sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Neste natal, pratique algo que atrapalhe sua própria vida

    Em abril deste ano, fui assaltada perto de onde moro, no centro de Curitiba. Só me levaram o celular e um pouco de minha sensação de liberdade de andar por aí. No mesmo dia prenderam meu assaltante e me perguntaram se eu gostaria de apresentar queixa. Me explicaram no que isso implicaria: um dos policiais me disse que eu ficaria empenhada tendo de ir à julgamento. Outro me disse: "se você fizer isso, ele vai preso por conta de um celular". Liguei para algumas pessoas pedindo opinião, estava indecisa e desprovida de conhecimentos nesses casos. Resolvi que o correto era sim apresentar a queixa. Achar que aquele moço seria preso por que eu quis e por conta de um celular, fazia me sentir a pior das criaturas, pois, para ser sincera, meu celular significava nada!
    Na delegacia, conversei melhor com o delegado sobre este meu sentimento. Ele me disse que eu deveria fazer isso, não pelo celular, mas pelo assaltante que já era um alguém sem existência, tomado pelo vício do crack e que poderia ter me matado se eu não tivesse nada para entregar-lhe. O moço tinha mais cinco registros de assaltos como o meu. As pessoas registravam, mas não queriam se comprometer como testemunha, e ele era solto então. Se alguém antes houvesse representado, eu não precisaria ter passado por isso, foi o que o delgado argumentou. Decidi assim - com toda a ciência do que isso significava - representar como testemunha. Ele foi preso e eu fui para minha casa com medo de sair e ser assaltada novamente, tão presa quanto ele: ambos vítimas da sociedade. Fui intimada para comparecer à audiência e não pude de jeito algum comparecer naquele dia. Então o oficial me intimou para uma segunda audiência, foi grosso comigo, disse que se desta vez eu não comparecesse seria emitido meu mandato de prisão. Me disse ainda que eu brinquei e não dei importância da primeira vez e, portanto, teria de pagar uma multa por isso. E assim, de vítima eu estava à um passo de ser companheira de cela do meu assaltante.

       Eu viajei e tentei adiar a audiência, mas não teve jeito, tive de comparecer porque me ameaçaram de responder processo por desobediência e ser presa sobre fiança. Chorei de raiva, senti como se tudo o que eu fiz para ajudar a sociedade, ajudar o menino que trocou meu celular por uma pedra de crack - já que até a prisão era melhor que o limbo em que ele vivia - senti que isso se voltou contra mim. Foi uma revolta e tanto, tive de gastar dinheiros não programados para voltar de viagem e voltar novamente, tive de perder um dia de férias com o meu pai, fui tomada por uma sensação de falta de liberdade. Fui à audiência. Dei meu depoimento, exatamente como fiz na delegacia no dia do roubo, só que dessa vez não sentia que fazia algo importante para o bem de todos... Até descobrir que o réu estava solto desde outubro e que deveria estar presente ali hoje, mas não havia comparecido. Quis saber mais sobre ele... O nome dele é Lucas, ou ao menos acham que é, pois ele não tem documentos e tudo o que sabem dele é pelo depoimento que deu. O promotor, que fez minha defesa, me disse que eu fiz um bem a vida do rapaz, que ele estava perdido nas drogas e que o tempo em que ficou preso ele comeu e voltou a ter saúde, até engordou, além de não usar drogas. Me contou também que o juiz, ali presente, havia conseguido uma vaga em uma clínica de recuperação para ele, e que o Lucas estava feliz com isso, até prometeu se internar, assim como prometeu comparecer naquela audiência.

Vendo minha mudança de fisionomia e minha vontade de saber mais, o juiz me contou sobre as histórias que Lucas contou à eles. Sobre o abandono da mãe, a vida pulando de abrigo em abrigo e a perda do direito de morar em abrigos após completar 18 anos. E, por fim, a vida como morador de rua e viciado em crack, até o dia em que foi preso, aos 20 anos. O juiz ainda me disse que se as histórias não são verídicas, o menino estava perdendo dinheiro, pois sabia atuar e emocionar perfeitamente.
    Quando fui para o fórum, no começo desta tarde, estava triste por ter a certeza de que nunca mais em minha vida - se passasse por outra situação como essa - representaria como testemunha. Fiquei triste de decidir isso por acreditar que é nosso dever de cidadão para o progresso da sociedade. Mas decidi que não testemunharia mais, por ter as audiências marcadas em datas que atrapalhavam a minha vida, não foi por preguiça ou medo como julgou o oficial de justiça, foi porque realmente foram datas nas quais eu tinha outros compromissos me chamando, e eu não fiquei nenhum pouco feliz com o fato desta audiência atrapalhar a minha vida. E agora, após ouvir tudo isso sobre o Lucas, só consigo pensar que ao menos eu tive, tenho e seguirei tendo um vida. 
    Ninguém sabe ainda se ele compareceu à clínica, provável que não, já que não esteve presente na audiência. Mas só o fato de ter dado à ele a oportunidade de conseguir se recuperar, ter dado à ele a possibilidade de contar a história da vida dele - que foi o que fez o juiz o achar merecedor de chances - só por isso, já valeu à pena ter ido, ter atrapalhado a minha vida.
    Eu não me canso de olhar para a vida dos outros e ver que sempre devo agradecer pela minha, pelo que tenho e por quem eu tenho, ou talvez só por ter alguma coisa. É um exercício que eu faço sempre... e de repente, me vejo toda cega e cheia de egoísmos, olhando somente para a minha vida.

      Foi por egoísmo que as outras vítimas do Lucas não o fizeram ir preso anteriormente, o que evitaria outros assaltos e o daria essa chance de ficar livre da droga e ganhar a vaga na tal clínica. Era exatamente assim que eu não queria ser quando decidi levar isso adiante, e foi exatamente assim que eu acabei sendo.

    Não sei se o Lucas está livre das drogas, acho difícil, assim como eu não estou livre de egoísmo, mesmo que tente estar. Fazer alguma coisa, na prática, é sempre mais difícil do que na teoria. Me sinto "gente" de ter passado por tudo isso, e acho que talvez eu nunca me desse conta da importância disso se não estivesse ocupada nas datas em que me intimaram. Vai ver aqui sou eu e minha mania de achar que tudo acontece exatamente como devido, mas eu realmente acredito que essa é a forma que a vida age para me transformar em uma pessoa melhor quando eu não faço o trabalho sozinha. É uma conclusão boba, mas não consigo fugir disto agora, aliás, me enfio mais nisto dizendo que é meu presente de natal: terminar o ano menos egoísta. E meus votos de natal para todas as outras pessoas que, assim como eu, falam sobre fraternidade - é que cada um que fale em fraternidade pratique algo que atrapalhe sua própria vida. 

Feliz natal, para mim, para vocês e para o Lucas.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O que é motiva os outros a viverem?

Quando eu era pequena meu pai sempre apontava e nos pedia para observar bem os outros. Os desabrigados, os órfãos, enfermos ou qualquer pessoa que ele julgasse estar em uma situação realmente triste. Polida como sempre fui, obedecia e observava. Não sei se por isto, mas sempre tive um interesse abundante pela vida alheia. Não pelo que está em torno, por fora e aparente. Mas sim pelo interno. Minha curiosidade instigante não quer saber idade, estado civil e profissão. Quer saber o que emociona intimamente. O que motiva, o que move, o que movimenta. Nem posso dizer que é um entretenimento por mim escolhido, pois imaginar como cada um vive é um processo natural para mim. Um processo que me envolve desde sempre.
Podem me taxar de louca, mas agora que trabalho perto de casa, e não preciso mais usar transporte coletivo diariamente, sinto falta. O ônibus sempre foi um espaço para olhar olhos e enxergar além. É quase uma vida, só que ao invés de estarmos presos entre o nascer e o morrer, estamos presos entre um embarque e um desembarque. E, como tudo na vida, temos que aproveitar da melhor forma. Alguns leem, alguns ouvem música, alguns falam ao telefone, outros conversam com alguém, ou às vezes falam sozinhos. Eu faço alguma dessas coisas enquanto observo vidas e questiono existências.
Quando eu tinha 12 anos ficava penalizada ao observar velhinhos cansados voltando do trabalho. Sentia compaixão por esses e certo alívio por mim. Minha vida parecia sempre tão melhor, e eu me torturava a entender o que é que os movia apesar de tantos pesares. Aliás, essa é a pergunta que me move até hoje: o que é que motiva os outros a viverem?
Anos depois, quando entendi as mazelas sociais do mundo e percebi que a vida ia além dos meus laços de relacionamento, e do meu mundinho, enxerguei aqueles mesmos senhorios velhinhos com outros olhos. Pensava então que poderia ser meu avô. Eu já não era mais tão feliz, me sentia parte integrante de um mundo injusto. Eu não me confortava ao saber que não era meu avô ali. E nem só por saber que num futuro não muito distante poderia ser minha outra geração. Meu jeito de olhar sempre se modifica na proporção em que mudo. Uma coisa liga a outra. O que esta lá dentro de mim reflete no que está fora, no modo como vejo o outro, como trato o outro. Assim como o outro - que está fora - se propaga para minha alma.
Recordo agora que quando comecei meu primeiro estágio, aos 15 anos, estava voltando para casa e escutei a conversa de uma moça ao telefone. Era uma sexta-feira. Os finais de tarde eram os que mais me reviravam de angústia. Sempre tive para quem e para onde voltar e, mais que isso, sabia que era sempre bem vinda de volta. A vida alheia não me parecia assim, cheia de retornos e esperas alegres...
A moça daquela sexta-feira falava ao telefone com um alguém. Era o final de semana do dia dos pais, e ela choramingava, parecia implorar algo. Ela mexia a cabeça para falar, para um lado e para o outro, em um gesto de lamento, quase que consolando-se nos próprios ombros, um de cada vez. Os olhos eram tristes, porém esperançosos. O peito e a respiração dela demonstravam-me que ela queria algo quase impossível de se conseguir, mas que existia um fio de esperança. Eu sabia disso, porque minha respiração ficava assim quando me negavam algo mil vezes. Mesmo quando eu sabia que era caso perdido, minha esperança, mesmo que pequena, existia.
... Existia porque tudo o que é pequeno existe. Mesmo que com pouca chance. Mesmo que com menor perspectiva. Assim me foram os idosos e a moça do ônibus. Eles e tantos outros personagens em meu caminho têm um significado para mim. Me existem, me constroem, me movem.
            São essas pessoas, esses outros, que nos montam, que nos igualam. Pois de fato, somos iguais. Não temos as mesmas pobrezas na superfície, mas nas nossas profundezas as misérias são iguais. Cada um de nós: tão singular e tão coletivo ao mesmo tempo. Todos tentando viver... Escrevi aqui sobre viver. Disse que para viver é necessário voltar-se para dentro, se questionar, se gostar, e ficar à vontade com o ato de ser-só e só-ser. Já falei muito disso aqui, pois acredito que este ato de se amar é o mais divino em uma escala de divindades. Mas este ato anda junto e de mãos dadas com o ato de olhar para o outro. Para mim, a coexistência destes dois atos é o que torna um viver realmente humano e com valimento.
            No ano passado, em uma determinada situação, enquanto eu julgava alguém - por algo que, normalmente todos consideramos errado, minha mãe me disse: “Não julgue assim, pois você não sabe o que a pessoa já passou. A gente nunca sabe que tipos de experiências e atenção tal pessoa recebeu na vida”. Ela disse isso e, sem saber, marcou ainda mais em mim a lição mais valiosa que alguém pode ter na vida, que é ser empático. Empatia é a capacidade de perceber de que modo uma pessoa pensa e sente
             A mesma coisa aconteceu este ano. Ao reclamar do jeito de ser de minha avó, meu pai me pediu para refletir na vida judiada que ela teve. Morri de dó de mim mesma ao perceber o quão automático nosso olhar sobre o outro se torna, mesmo com nossas pessoas mais próximas, um só julgar, sem um olhar mais atento, pode acontecer com frequência.
            É claro que o fato de alguém ter passado por isso ou aquilo não justifica certas atitudes ou fatos. Mas justifica que tenhamos um olhar de compaixão e empatia sempre. Ao menos é no que acredito. Pois só acredito em uma vida válida quando repleta de sentimentos como esses, advindos do amor. Amor abundante: a si mesmo, e ao próximo.
Nos sentimos humanos quando percebemos que somos tão carentes quanto qualquer outro mortal e quando conseguimos enxergar a carência de qualquer outro, bem como sua miséria e nossa miséria. Porque sentir-se humano é mesmo um sentimento miserável, mas ao mesmo tempo grandioso.
Só exercemos nossa humanidade quando conseguimos viver de olhos abertos para as indigências dos outros e do mundo e, ainda assim, conseguimos viver  e seguir com alegria, mas sem fechar os olhos.

***
Ontem recebi meu diploma de bacharel em comunicação social. Na cerimônia de colação o reitor falou algo muito parecido com tudo o que eu escrevi acima. Fez um discurso sobre a filosofia da instituição no qual disse que o papel desta é formar indivíduos que apesar de serem indivíduos exerçam suas funções de cidadãos. Fazemos um juramento de praxe ao colar grau, onde garantimos que vamos utilizar nossos conhecimentos em prol da pátria. Acho esse juramento muito assertivo, principalmente vivendo em um país em que as pessoas com nível superior são a minoria. De minha parte, prometo exercer minha profissão da forma mais digna e humana possível, em benefício da pátria. Acho que todos nós devemos fazer isso dentro da área que nos cabe...
Não dediquei meu diploma à ninguém ontem, mas aproveito para o fazer agora, nessa forma que me sinto mais à vontade: na escrita. Dedico meu diploma àqueles que me ensinaram a filosofia da qual o reitor falou ontem, muito antes de eu ingressar na universidade. Dedico então, às duas pessoas que sempre me fizeram abrir os olhos e ver que não sou só um ser individual, sou cidadã. Dedico enfim, aos meus pais, Magno e Rosana. Seria mentira dizer que me ensinaram tudo o que hoje sei, mas com certeza me ensinaram mais: me ensinaram a ter vontade de saber.
Pai, mãe, esse é pra vocês!

sábado, 16 de outubro de 2010

Terremoto em escassez



Li esses tempos um poema do Mario Quintana que me fez suspirar, que me entendeu! Poemas são assim mesmo, gritam algo que há em nós! Gritam tão alto quanto os nossos sentimentos mais profundos, no mesmo tom, quase uma resposta para a alma. E a calmaria que um poema traz, vem da identificação que algo dentro da gente faz com os versos. Algo dentro da gente se sente em paz com a poesia que grita o mesmo grito, que fala a mesma língua.

CONFISSÃO
Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!

O que faz este poema me ecoar é essa coisa do terremoto na alma. Pois percebo que, apesar dessa coisa da paz interior ter virado clichê e estar na boca do povo, estar em paz parece anomalia! O que mais existe por aí é um povo com carência de um chacoalhão que estremeça a alma, ou ainda: gente que busca fora de si – e somente fora de si - por esses tremores.  E aí, até não ter programação de final de semana parece com a triste “paz de uma cidade bombardeada” ou de um cemitério. Por isso concordo tanto com a confissão de Mario Quintana. Oras, ter coisas exteriores acontecendo de nada vale se não vivemos aventuras interiores todos os dias. De nada vale se nossa vida interna não for agitada. De nada vale se não for um desespero, um susto, uma descoberta, uma sintonia. De que adianta esperar ser movimentado por um exterior, se não tivermos um verdadeiro terremoto dentro da alma? Um furioso tremor que não se contenta em viver de uma maneira morna, não se contenta com o mais ou menos, com a comodidade da falta de questionamentos próprios. E no final, os acontecimentos internos é que refletem lá fora. O exterior nada mais é que um reflexo do interior, e não o contrário!
Tenho me sentido tão down! Morna. Logo eu, que me irrito com pessoas que levam a vida de uma forma mais ou menos. (Sem querer abusar do Quintana, mas já abusando..) “Sinto-me assim, sem motivo algum, como alguém que estivesse comendo uma empada de camarão sem camarões, num velório sem defunto”. Foi isso o que senti: um vazio tremendo, uma vertigem, uma sensação de não pertencer a lugar algum. Me senti a própria empada de camarão sem camarões! Logo eu, que acho tediosas as pessoas que vivem reclamando de tédio. Diz lá no dicionário: “estado de desinteresse ou de falta de energia, como reação a estímulos percebidos como monótonos, repetitivos ou tediosos. Ocorre pela falta de coisas interessantes para se olhar, ouvir, perceber etc., ou para fazer (física ou intelectualmente), quando não se deseja estar sem fazer nada”.
Vivemos numa sociedade de informação, onde ficar entediado não tem mais espaço. Com a internet, temos diversas opções para nos livrar desse mal (amém!). Vídeos, blogs, jornais. É tanta coisa para se consumir todos os dias, que nem há tempo suficiente. Tanta informação de qualidade, que dá vontade de ter duas vidas! Quem não gosta de computador, tecnologia, ou sei lá – mesmo que seja para se informar e se entreter - tem por aí, bibliotecas, sebos, museus e etc. para todos os gostos e bolsos. Não tem desculpa mesmo! Só a arte já é uma forma de prazer sem fim, e ainda assim - por mais absurdo que isso pareça – uma grande massa não a usufrui.
Fora isso - da arte que hoje é de tão fácil acesso, e nos ocupa o tempo causando satisfação - temos nossa imaginação e o nosso sonhar acordado. Por isso, se sentir entediado, se sentir mais ou menos e morno, com nada que nos alegre, vez ou outra pode ser normal, e até faz bem para dar contraste na vida - já que até uma vida mil por cento todo dia só é reconhecida por ter dias com a porcentagem zerada. Mas se o tédio é um sintoma presente com freqüência é sinal que a relação consigo mesmo não tem sido das melhores.
Foi do que me dei conta está semana. Nem a internet, a arte, e minha imaginação me livraram de um baita aborrecimento – que é sinônimo do tédio. Fiquei inquieta, e cheguei a essa conclusão: “só posso ter perdido a conexão comigo mesma”.
Hoje, quase tudo voltou ao normal. Tive uns dias estranhos e opacos, normal e humana que sou. Mas e quem tem uma vida repleta de dias mais ou menos, de dias vazios? Acho que tédio nada mais é do que uma seqüência de dias mornos, dias à espera de fatos externos, dias à procura de uma felicidade e de emoções que emanem do outro, que venham de fora, quando na verdade, estão dentro da gente.
Nossa alma é um paraíso pouco explorado, um paraíso descartado, pouco observado. Nossas maiores aventuras vêm de dentro, do que faz nosso coração borbulhar, do que faz pensarmos em tudo o que queremos fazer, do que faz ter sede de vida, e nos dá vontade de sair gritando e pulando, vontade de conquistar o mundo. Essa incessante e desesperadora procura, e a sede de descoberta e novidades que temos é devida! O erro está no lugar onde essa busca ocorre, porque – mais uma vez - é dentro, e não fora que precisamos tratar. Quem não trata dentro, pode escalar o Everest, visitar o Machu Picchu ou vivenciar qualquer incrível aventura e, ainda assim, nada descobrir, nada compreender, nada sentir.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Na parede da memória

Depois do almoço de domingo, enquanto comíamos bolo para celebrar o último aniversário da década dos vinte de minha irmã, alguém trouxe duas caixas de sapato cheias de pequenos álbuns fotográficos. Foi uma alegria estranha. Reparei todos suspirarem um suspiro pesado. Um ar de afeto e consolo. Um misto de dor e flor. Cada um com um álbum à mão. Uma gritaria: todos queriam atenção para a pérola que haviam encontrado. Tínhamos um quê de historiadores.
Minha irmã encontrou uma viagem que fez com o pessoal do colégio, eu encontrei meu pai com cabelo Black Power anos 70, alguém achou uma pessoa não identificada em outra foto. “Quem é esse? Meu Deus! Que homem! Quem é, quem é?” Vira um mistério! ... Minutos mais tarde minha tia lembra: é um afilhado da minha falecida avó. Moço que foi para a Itália e virou padre. Benzadeus!
Pouco depois, me acho ali. Com lágrimas escorrendo e a boca de quem grita. Ninguém me ouvia? Ninguém me levava à sério? Por que foi mais engraçado do que trágico? Por que mereceu mais uma foto do que um abraço? Penso na infância, no ato de ser criança. Reparo em meus dois sobrinhos rindo em nossa volta. Ambos curiosos. “Laura, olha você aqui na barriga da sua mãe!”, eu falei enquanto ela mostrava outra pérola. “Tia, como faço pra colocar essa foto no meu Orkut?”
Escuto meu tio dizer que meu primo se parece com o meu irmão. Minha mãe discorda, acha que ele é a cara da minha prima. Mostram a foto à todos, meio que caçando votos. Quem concorda com quem? - Eu descubro que quem é extremamente parecido com meu irmão é o meu sobrinho. Nunca me daria conta de tal semelhança não fosse por essas abençoadas fotos. Que alegria engraçada! Estamos realmente conectados. Somos realmente uma família daquelas: cara de um, focinho do outro.
            Quem cresceu, envelheceu, engordou, emagreceu e etc. Foi assim a tarde toda, todos interagindo, desvendando, relacionando um com o outro e se conectando. Conectados pelo passado.
            Conectados pelo passado...
Fiquei refletindo então sobre o passado e qual sua significância em nosso presente. No passado hospedamos nossa história, até aqui escrita. E ter uma história é fundamental, seja ela qual for. É preciso se perder no passado para se encontrar no presente. Saber quem fomos e de onde viemos. Para que assim, guiados pela história do passado, decidamos quem queremos e não queremos ser, para onde vamos e para onde não desejamos voltar mais.
Deixamos tantas coisas sob escombros. Desabadas, arruinadas, soterradas. Há escombros por todas as vidas, na minha e na sua. Divago e me pergunto até que ponto devemos nos perder em lembranças nítidas ou borradas? Se, explorar o passado, é uma aventura que dá vertigem, o que fazer então? Mergulhar em tudo o que já não é ou ignorar? “Pra que lembrar essa medonha história? Eis-me aqui, recomposto, sem um ai. Sou o meu próprio Frankenstein – olhai!”.
Aceito este convite de Mario Quintana para olhar meu próprio Frankenstein. Decido por mergulhar - sem afundar - no passado. Tomo tal decisão por acreditar que tudo o que eu sou hoje é produto do que já fui. Nascemos e morremos tantas vezes em vida. Somos os melhores pedaços de cada uma das nossas mortes. Mosaicos, colchas de retalhos ou – como cantou Elis Regina - quadros em uma parede de memória.
Olho a parede e me vejo com um, dois, três, dez, quinze anos. Olho-me, e tento entender o que sobrou dos tantos eus que fui. O que ficou? O que foi? Quantas inocências perdi? Quantas ainda tenho? Analiso meus quadros preferidos, e também os mais desagradáveis. Quero despendurar alguns, mas estão exatamente no centro, ligando uma coisa a outra, fazendo sentido nas transições. Que conforto: tudo foi essencial... Fito ainda a parede. Tantos quadros. Tantas fases desconexas. São os melhores quadros que doem! Os ruins me fazem bem, me fizeram chegar onde estou e aprender o que aprendi, nem me causam dor. Na verdade até me causam bem estar, me fazem heroína por lembrar o que foi superado. Já os vilões do passado, são sempre os nossos melhores quadros. Tenho uma coleção de verdadeiras obras de arte que me rasgam por dentro, fazem escorrer sangue e sujam minhas paredes. Verdadeiras feridas vivas, escondidas pela beleza das cores de uma alegria única e já distante.
Assim constato que o passado vive em mim. Eu não vivo no passado, mas ele vive em mim. E, contudo, me valeu a aventura. Vi coisas quais quero e posso resgatar. Por outro lado, é uma calmaria perfeita entender que realmente tive de deixar para trás o que já não me cabia mais. Aquela calça jeans, aquele jeito de ser... Não adianta forçar, algumas coisas não se encaixam em nosso ‘novo eu’. Simplesmente não nos cabem mais.
Antes de regressar ao presente, volto-me ao último quadro. É um retrato perfeito de meus familiares reunidos vasculhando fotografias. Minha mãe olha uma foto com cara de saudade boa, saudade de coisa bem vivida.
Entendo por fim, que rever um bem viver é o que torna um passado mais ameno, sem feridas, sem escombros. É o que qualifica e dá sentido à nossas vidas: viver coisas bem vividas.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A música que canta e conta a vida

Participei anteontem do quarto debate do "Variações sobre o mesmo tema: Felicidade"  - evento já comentado aqui. O tema era “Felicidade e Música”, com a curadoria da filósofa Marcia Tiburi e o convidado Rodrigo Faour, que é jornalista e pesquisador musical.
Não foi à toa que Marcia nos apresentou o convidado como “uma enciclopédia da música popular brasileira”. Ele realmente é o sabe-tudo-da-MPB! Autor do livro “História Sexual da MPB” e produtor de um programa de TV com mesmo nome - veiculado no Canal Brasil - ele compartilhou sua vontade de aproximar os brasileiros da história da música. Por isso, propositalmente colocou este título, para nos chamar a atenção para conhecermos a história de artistas de outras décadas.

     Alguns pontos bacanas que Rodrigo levantou:
- Nós, brasileiros em geral, temos pouca referência do que foi feito de música “de qualidade” décadas antes desta. Isso se deve, em parte, a falta de material e informação que existe disponível. Nos Estados Unidos, se alguém quiser comprar o primeiro show da cantora Barbara Streisand de 1960, encontra-o em qualquer loja. Já aqui, isso não acontece. Exemplo disso é a cantora Dalva de Oliveira, que reinou por 30 anos na história da nossa música e não encontra-se acervo sobre a obra dela com facilidade.
- A cantora Marlene foi todos os tipos de artista possível. Além de ser cantora e compositora, ela fez cinema, TV, teatro e rádio. Foi convida por Édith Piaf para cantar na França por quatro meses. Mesmo com este currículo é pouco lembrada. Isso porque não criamos aqui uma cultura de firmar e reavivar artistas como a Marlene. Nos Estados Unidos – seja por uma preocupação cultural ou somente comercial – artistas como Elvis Presley, por exemplo, estão sempre sendo relembrados.
Esta é uma pitada das tantas coisas que o Rodrigo falou. Mas, o que mais me chamou a atenção e me deu vontade de dizer à ele: “obrigado por dizer isso”, foi quando por duas vezes falou sobre o Funk.
A questão central que discuti em meu trabalho de conclusão de curso foi a de se enxergar a música como cultura. Discuti o rock (tema direto de meu trabalho) não só como estilo musical, mas, principalmente, como um circuito que possui forte influência no modo de vida e comportamento de seus seguidores.
Por que é assim que funciona: por meio da arte nos reconhecemos e entendemos como é que chegamos aqui, como foi que nos tornamos o que somos. É a arte que nos permite viver verdadeiramente: é a nossa expressão. Ou nos expressamos por intermédio dela ou nos revelamos por ela. Li um texto do psicanalista Contardo Calligaris, que explicava bem isso: “Oscar Wilde notou: as pessoas passaram a olhar languidamente para o pôr-do-sol só depois que esse fenômeno natural se tornara objeto das aquarelas de Turner. Era um jeito de dizer que a realidade não nos sugere o que pintar, ao contrário: é a pintura que nos ensina a olhar”.  
Se a natureza se tornou visível por uma tela e nos fez olhar com outros olhos para o pôr-do-sol, isso também é feito com nosso modo de ser, de ver, de viver. No caso brasileiro, falando do contexto das sete artes, a música é a que mais se aproxima do povo. É a nossa arte favorita em um contexto geral. Conseguir enxergar o que a música conta da história de um povo, ver o que a música revela sobre uma “tribo” é definitivamente encantador.
Acho que, por isso, o carnaval é um movimento que me tira tanto o fôlego. É um movimento que movimenta! Movimenta comunidades, gera empregos, unifica, transforma!

Glória a quem trabalha o ano inteiro em mutirão/ gente empenhada em construir a ilusão/ e que tem sonhos como a velha baiana/ que foi passista, brincou em ala/ dizem que foi o grande amor do mestre-sala/ o sambista é um artista/ os foliões são embalados pelo pessoal da bateria/ sonhos de rei, de pirata e jardineira/ pra tudo se acabar na quarta-feira (Martinho da Vila)

O Cazuza cantou, em 1988, todo o vazio e o resto de um Brasil pós ditadura:

Meu partido é um coração partido / E as ilusões estão todas perdidas / Os meus sonhos foram todos vendidos / Tão barato que eu nem acredito... / Meus heróis morreram de overdose / Meus inimigos estão no poder / Ideologia! Eu quero uma pra viver.

Por isso tudo fiquei estarrecida  quando Rodrigo falou sobre o Funk. Não vou dizer aqui que sou fã deste gênero, mas quando escuto por aí, às vezes, gosto de prestar atenção nas letras, acho divertido e sempre tive esta opinião: de que canta a vida de uma comunidade. Não acho ruim tanta gente não gostar, mas acho péssima a forma como olhamos isso, ou melhor, a forma como não olhamos! Como o Rodrigo mesmo disse, se começarmos a prestar mais atenção, quem sabe não conseguimos inovar os ritmos e fazer algo maravilhoso com essas letras.
         Foi excepcional e arrebatador ouvir alguém que estuda música a sério, falar do Funk assim, enxergar assim, não só como estilo musical, mas acima de tudo como um movimento cultural que canta e conta a história de periferias, de como vivem, como se divertem, o que pensam sobre a vida. Porque no final de tudo, essa é a magnitude da arte, e a grandeza da música: a chance que é dada a cada indivíduo de afirmar sua própria cultura.
 
Aperitivo:

O Rodrigo Faour produziu um disco da cantora Alcione, chamado Sabiá Marrom, com músicas inéditas. Foi uma descoberta, uma relíquia da melhor época da cantora, de 1970. Eu ainda não ouvi, mas já li por aí que foi considerado um dos melhores discos do ano. Fica a dica!

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Felicidade: nossa única necessidade!

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O que buscamos nessa vida é ser feliz. Mas qual é, afinal, o segredo da felicidade? Será que ela está ao alcance de todos independentemente da renda? Será que o dinheiro traz ou não felicidade? Quanto custa ser feliz?

Esta última pergunta é o título da matéria de capa da edição de setembro da revista Galileu. Acima deste título vem uma informação em letra menor, e talvez a mais importante: “Não é auto-ajuda, é ciência!”. Que legal isso, de se falar sobre felicidade cientificamente!

Lendo a matéria, fiquei pensando que tem se falado tanto nisso ultimamente, que até arriscaria dizer que estamos falando à sério em ser feliz como nunca antes na história.

No último domingo, num almoço em família, falávamos sobre os probleminhas da vida, quando meu avô, aos seus 74 anos, contou que sempre foi muito pobre e, por isso, não tinham tempo para pensar nessas coisas da vida. Disse que a única preocupação da família era como fariam para comprar o alimento necessário para sobreviver a cada dia.

Fiquei mexida ao imaginar que há muitos e muitos anos a preocupação geral do mundo era para com as necessidades mais primitivas e só. À medida que nos civilizamos e evoluímos surgiram outras necessidades. Mas tanto no tempo do meu avô, como ainda neste tempo, existem muitas famílias que nem têm o direito de se preocupar em ser feliz. Gente que ainda luta pela sobrevivência! Assim pensando, agradeci. Agradeci muito por ser afortunada, por ter o que comer, por poder me voltar à mim mesma, me questionar, ter somente necessidade de crescer como ser humano, e acima de tudo ter direito de ser feliz. Que benção, não?

Na última semana, participei de um encontro que discutiu as relações da felicidade e da filosofia nas nossas emoções. No primeiro dia o tema era ‘Felicidade e Ética’, com Daniel Lins. O Daniel levantou a questão de que a felicidade deveria ser um direito constitucional de todos, e isso até já virou Proposta de Emenda à Constituição este ano, aqui no Brasil! Ele entende que quando um país não dá ao seu povo, por exemplo, o direito à educação e alimentação, pode-se entender que o direito à felicidade fica restrito, e não é para todos.

            A ironia disto tudo é que mesmo quem tem condições para buscar ser feliz, encontra grande dificuldade em fazê-lo. Os livros de auto-ajuda ensinam métodos para conseguir dinheiro, emprego, e o grande amor da sua vida. Eu acho bem bacana a coisa toda do pensamento positivo, mas reduzir a felicidade a ter o que se quer, não há de ser o caminho correto. A felicidade é bem mais simples que isso tudo aí. Essa seção auto-ajuda pode ensinar, sem querer, o oposto de uma vida feliz.

Vou citar um exemplo. Ganhei o famoso livro “O Segredo” de aniversário e, num dia de julho, com o frio que convida-nos a ficar em casa, senti vontade de compartilhar as cobertas com alguém: carências! Olhei para o livro e comecei a pensar no que ele me diria para que eu atraísse alguém pra debaixo dos meus cobertores coloridos.

O livro explica que nossas ações cotidianas dizem muito sobre o que atraímos, e que não basta pensar positivo, mas para além disso, devemos agir como se o que queremos já existisse em nossa vida, como se já fosse verdade.

Vou dar o exemplo que o livro usou. Uma moça queria um namorado. Começou então, a agir como se ele já existisse em sua vida! Nas duas vagas de garagem que pertencem a ela, tinha o costume de estacionar o carro ocupando ambas. Mudou isso, começou a deixar uma vaga livre. Abriu espaço em um lado do seu guarda-roupas. Dormia só de um lado da cama.

O livro me fez um bem danado. Primeiro porque ri muito imaginando a moça fingindo que tinha já um namorado, e segundo porque estava me sentindo patética de ir olhar o capítulo “O Segrego Para o Amor”, e aí me senti bem normal com a história da moça. Não deixei de me sentir patética, só lembrei que todos nós somos patéticos e tudo bem...

Esse e outros livros desta seção aí tentam ensinar como atrair coisas e pessoas. Acredito eu que assim se perde o espaço para as surpresas, para as coisas pequenas e simples. Perdemos assim, o espaço para, ao invés de atrair, sermos atraídos. Sem contar que esses passos deixam qualquer um neurótico igual a essa moça. Acho que ser feliz tem que ser bem mais simples, solto e desprendido e natural do que isso.

            Parece bem clichê, mas ser feliz é simplesmente se apegar nas pequenas coisas da vida, é viver profunda e intensamente um momento, uma conversa ou simplesmente admirar um pôr-do-sol sozinho. Essas coisas simples não custam dinheiro nenhum e ao mesmo tempo são impagáveis.

Claro que aqui, sou apenas eu falando, com base em tudo o que vivo, leio, escuto e entendo. Já estão todos fartos de achismos sobre fórmulas para a felicidade e, por isso, vou falar sobre o que as pesquisas mencionadas na Revista Galileu nos mostram. “Estar focado em uma atividade no presente e gastar tempo com amigos e a família parecem ser uma forma eficiente de ser feliz”, diz um pesquisador.

           Os cientistas deixam claro que “gastos exorbitantes não tornam ninguém mais feliz no longo prazo. Ao contrário, pagar por uma refeição especial, cursos de idiomas ou viagens curtas trariam muito mais retorno para a construção da felicidade duradoura, pois nos ajudam a estabelecer conexões pessoais” e “a relação entre felicidade e pequenos prazeres é três vezes maior do que entre felicidade e riqueza”.

            Os pesquisadores deixam claro que não é um culto contra o dinheiro, apenas querem mostrar que quem acha que ganhar na loteria torna alguém feliz está extremamente enganado.



Em um estudo clássico, realizado na década de 70, pesquisadores das universidades de Massachusetts e de Northwestern, nos Estados Unidos, compararam o nível de felicidade de um grupo que tinha ganhado na loteria com outro, que havia ficado paraplégico. Ainda que, logo depois do ocorrido, as pessoas do primeiro time tenham se sentido muito felizes e as do segundo estivessem no extremo oposto dessa sensação. Após o período de um ano o nível de felicidade dos dois grupos era praticamente o mesmo. As estatísticas apontam que, após esse curto período de tempo, um trauma já não causa tanto impacto sobre a felicidade do indivíduo (Galileu, set/2010)



            Esta pesquisa mostra que não existe situação a qual não consigamos nos acostumar, pois se o sentido da felicidade é viver momentos presentes e aprecia-los, então qualquer pessoa pode fazer isso, independente de qual circunstância lhe rodeia.

            Ainda falando sobre a relação da felicidade com dinheiro concluem que quando sabemos que vamos ter dinheiro suficiente para pagar por qualquer coisa, teremos menos satisfação. “O que é garantido não tem a mesma graça para nosso cérebro quanto o que precisa ser conquistado. Foi descoberto que o pico máximo de prazer em nossa mente ocorre ao planejarmos algo que tem 50% de chance de dar certo, quando temos 100% de certeza, a liberação dos neurotransmissores da felicidade é menor”, diz a neurocientista carioca Suzana Herculano-Houzel.

            Uma análise, mencionada na matéria da revista, diz que de nove categorias de consumo (exemplos: cuidados pessoais, comida, saúde, veículos e residências), a única que se relaciona de uma forma positiva à felicidade é o lazer, em especial aquele que nos proporciona relações interpessoais.

            Ah, o lazer! Chave importante e essencial para sermos feliz. Estou lendo agora “Manual do Hedonista”, que defende muito bem – como esperado – a ideia de prazer e lazer.  “Os negócios realmente desmoronarão se você parar de administrar os mínimos detalhes? A casa vai mesmo implodir se você não cozinhar, limpar e cuidar de tudo?... Não. E para provar isso, basta você morrer. O que vai acontecer depois? As coisas irão se resolver sozinhas, é isso que vai acontecer”.

   É... viver vai bem além da nossa rotina, do nosso trabalho e afazeres. A verdadeira - e talvez única - responsabilidade que temos na vida é para conosco. Mesmo quando nos sentimos responsáveis pelos outros, a melhor forma de fazer bem ao próximo, é cuidar da nossa própria felicidade. “Aceitar o prazer não é egoísmo, é o máximo do altruísmo”. Isso! Espalhar felicidade, contagiar os outros é o que de mais belo podemos fazer para prestar socorro.

Quanto a nós mesmos - agora que estão provando que independente da renda, trabalho, afazeres e responsabilidades, qualquer um está fadado à felicidade - é bom sempre lembrar que evoluímos e que vivemos em um tempo onde a única necessidade é ser feliz. Então vamos agradecer e usufruir! :)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A minha solidão me faz maior que o universo

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Para minha amiga Cynthia, com carinho.

Uma amiga me escreveu hoje dizendo que se sente só. Que está rodeada de gente e ainda assim se sente só. Vi em algum lugar do meio virtual uma coisa bem bonita que descreve a sensação: “O vazio cola o umbigo na costela”.


O que será que devemos fazer para nos livrar disso? Será que é possível se livrar? Ou temos apenas que aprender a conviver com esse vazio que faz do umbigo e da costela dois vizinhos?


Todos nós – querendo ou não - andamos lado a lado com a tal da solidão. A cronista e jornalista Martha Medeiros, já escreveu sobre a solidão, esse sentimento que rejeitamos. A Martha falou com indignação, disse que todos querem se livrar da solidão “como se fosse um tumor maligno”, quando na verdade é um sentimento tão legítimo quanto à alegria. Eu concordo plenamente com ela.


Faz um tempo já que decidi assumir meu relacionamento com a minha solidão. Já brigamos tanto - ou melhor, eu que brigava com ela - tentei mandar ela embora, tentei questionar sua existência, e por muito tempo tive um medo gigante de saber que a qualquer hora ela chegaria para me aterrorizar.


Hoje, fizemos as pazes. Tanto que me sinto a vontade para vir aqui e falar sobre a solidão, a minha e a dos outros.


É importante que não confundamos sentir solidão com sentir-se solitário. O solitário é carente, carece de gente. A solidão é algo mais do “eu comigo mesmo”, é uma inquietação da alma, é uma coisa que se sente, e não uma coisa que se quer. Quem sente solidão só carece de si mesmo!


Pensando bem, acho que ela é uma coisa meio física... Isso mesmo: um sintoma físico, igual quando ficamos doentes. Esses dias fiquei gripada. Precisei então, dar uma desacelerada em várias coisas, pois meu organismo estava todo debilitado. Rendi menos no trabalho, comecei a secar o cabelo antes de sair de casa, pensar em todas as formas de cuidar de mim, com remédios e chás e horas a mais de sono. Fiz tudo isso por um simples motivo: meu corpo me pedia, implorava!


É isso que a solidão faz, bate no peito como um aviso de que é hora de se recolher, de se voltar para dentro, de repensar algo, de se cuidar com carinho.


Temos que aprender a prestar atenção nos nossos sentimentos, só assim vamos saber detectar que sentimento chega. Quando é a vez da solidão ficamos ignorando, saindo para lá e para cá, feito uns desesperados, destrambelhados, procurando algo ou alguém que preencha o vazio no peito. Tem quem casa pensando em se livrar da solidão, sem saber que não tem casamento, relacionamento, ou qualquer coisa que nos apartará dela. O escritor inglês Cyril Connoly disse satirizando: “O pavor da solidão é maior que o medo da escravidão: assim, nos casamos”. Seria cômico, se não fosse trágico!


Eu diria – com base em minhas experiências - que tudo o que devemos fazer é parar um tantinho de tempo e cumprir o que Ela nos pede: i-so-la-men-to.


Cuidemos então de nossa solidão, ela é tão autêntica quanto a alegria e, portanto, merece toda nossa atenção, todo nosso carinho e respeito. Se pensarmos bem, o único sentimento que dá chance à nossa individualidade é este. Quem mora com os pais, marido, ou filhos, vive reclamando que não pode ter um tempo sozinho. Ta aí: a solidão é a chance de ficar sozinho mesmo quando todo mundo está do seu lado, ninguém importa, só você.


Quero dizer a minha amiga que isso pode ser bom! Podem me achar louca, mas agora enquanto escrevo aqui, me chegou a ideia de que a solidão é o sentimento que nos humaniza, porque olhando lá no fundo da gente, conseguimos olhar lá no fundo do outro. Mesmo nos sentindo tão fora do mundo, nos conectamos à ele, pois a solidão pertence a todos e por isso nos iguala!


Lembrei de um conto da Clarice, sobre uma moça rica que conhece um mendigo. Conversando com ele, a moça percebe que é tão pobre quanto ele. Não lembro agora o que a fez se sentir igual a ele, mas acho que se tem um sentimento que liga o rico de dinheiro ao pobre de dinheiro é a solidão.


Eu nunca tinha parado para pensar o quanto gosto de sentir solidão. Hoje, quando ela bate na porta, até fico feliz. E tem vezes que eu a chamo.


Fico feliz por saber que é o meu estado de espírito mais fundo, onde aquele buraco no peito me deixa sensível para os cheiros, temperos e destemperos. Você se sabe ali, mas não consegue se voltar para nada que não venha de dentro de você. Alguém fala comigo, quando estou assim, e eu até respondo, mas eu não sei qual foi a pergunta nem qual foi a resposta, o meu corpo liga um piloto automático para lidar com as burocracias básicas do cotidiano e eu possa curtir meu estado de internamento. Que lindo, não?


Não sei como demorei tanto para começar a acolher minha solidão, pois ela faz me sentir maior que o universo, é isso: sinto como se eu olhasse o mundo de fora (ou de cima?), como se apesar de estar ali fazendo parte e vivendo, estivesse, na verdade, com o mundo nas mãos, rodando, rodando, e sentindo.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Por uma alma sem GPS

     Fiz ontem, uma pergunta ao querido Márcio Vassalo, que é jornalista e escritor.
     Ele me respondeu agora, e estou publicando aqui.
   
Ver resposta no site do Márcio

"Querido Márcio,
Acompanho suas respostas aqui, nunca perco nenhuma! Aprendi a viver lado a lado com o encantar-se, e esse espaço me ensina cada dia mais em como devemos lidar com as situações difíceis da vida sem perder o brilho. Eu queria que você falasse então de como lidar com o encantamento quando se está apaixonado? Parece bobo, mas o encanto pode ser coberto por tantas emoções fortes envolvidas: é um tanto de medo, de ciúmes, de insegurança... Li uma frase do Drummond que diz assim “O tempo não é medido pelo relógio, mas pelo vácuo na comunicação, pela expectativa sem segurança”. A expectativa sem segurança, acho que é isso que distrai o nosso encanto."

- Bruna Magno, jornalista - Curitiba – PR




Bruna querida,

A sua mensagem deu brilho no meu dia. Estou aqui com um bocado de e-mails para responder, um bocado de textos para terminar, um bocado de gente para telefonar, um bocado de coisas para fazer na rua, às vésperas do lançamento do meu livro e de uma viagem de semana toda para Belém do Pará, mas resolvi respirar para te responder. Ou será que te respondi para respirar? Assim, respirando com fundura, encontrei uma foto minha de quando eu tinha onze anos de idade, com o sorriso mais dentuço e mais oferecido de todos os sorrisos que eu já dei na vida. Bem, como faria o Mario Quintana, perguntei a esse garoto o que ele estava pensando de mim hoje. E então, enquanto o menino da foto pensava para me responder, decidi desacelerar um pouco, e te escrever agora, ouvindo La vie en Rose, música que eu cantava para ninar o Gabriel, meu filho, há uns dez anos, quando ele ainda não pesava nos meus braços.

Vou te dizer o que eu acho, como sempre faço aqui, nas minhas respostas, viu? Antes de tudo, é uma delícia saber que você está namorando O livro dos sentimentos. E nada do que sentimos é bobo, não, Bruna. Bobagem costuma ser o que nós fazemos com os nossos sentimentos e, mais do que isso, o que quase sempre deixamos que eles façam conosco. De fato, não temos como escolher os momentos em que aparecem os nossos medos, as nossas inseguranças, os nossos ciúmes, as nossas raivas, os nossos desassossegos, as nossas emoções mais indesejadas. Mas podemos escolher a hora em que vamos interromper tudo isso. A tarefa é difícil, sim, mas compensa a vida toda vez que dá certo.

Bruna, compensações à parte, será que uma expectativa sem segurança é realmente o que distrai nosso encantamento? Será que toda distração de encantamento é ruim? Tem vezes que nos distraímos do encantamento só para voltarmos ainda mais intensos e inteiros para ele. E também tem vezes que o encantamento é que se distrai de nós, de tantos ruídos que fazemos com os nossos pensamentos engarrafados num trânsito sem fim.

Quando falamos de sentimentos, incluindo aí a paixão, toda expectativa é um salto no trapézio, sem rede de segurança. Nesse caso, os sobressaltos, as taquicardias e os riscos são a danação e o encanto do que sentimos, do que nos tira o chão e nos dá asa ao mesmo tempo. Mas, para mim, na realidade, o que nos empurra para longe do encantamento, acima de tudo, são as nossas urgências mais sem importância, os nossos pensamentos mais barulhentos, as nossas ansiedades mais tiradoras de poesia, os nossos medos mais alimentados, a nossa vontade de controlar tudo o que nos acontece de mais belo, como se isso fosse possível. Será que existe controle para a beleza? Ou será que no fundo a beleza é o que mais nos descontrola? Numa época em que vivemos obcecados pelo êxito, pelo acerto, pelo sucesso e pelo controle, numa época em que grande parte do mundo tenta meter um GPS na alma da gente, perder o rumo e errar também pode nos fazer mais livres, plenos, mais autênticos, mais felizes. Outro dia autorizei uma amiga a errar. Gostei tanto que hoje me autorizei também. Que tal você errar um pouco hoje, Bruna? Errar também pode ser uma forma de se encantar. Afinal, não há nada mais incerto do que a beleza.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Sobre extraterrestres e torniquetes

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 Pedaços soltos de música, trechos perdidos num texto no meio de um livro, uma cena de filme, um recado de um amigo. Vim de encontro com todas essas coisas ontem. Aliás, sempre estou no meio de tudo isso - música, texto, filme, amigos. Mas ontem em especial, essas coisas estavam todas interligadas, como se me pedissem para fazer algo por elas.
Eu nem sabia o que poderia fazer, não via como escrever sobre todas elas ao mesmo tempo, apesar de ver um laço entre elas, não saberia explicar tal conexão, talvez porque, na verdade, eu não via, só sentia, e às vezes é difícil explicar o que se sente.
Quando acontece algo assim, e me vejo impotente - com tanta coisa na mão sem saber o que fazer de tudo isso - guardo em meus rascunhos, não serve para muito, mas ao menos eu me sinto em paz, sinto como se não estivesse a ignorar nada que o mundo me sugere.
Eu joguei tudo o que me surgiu no papel, sublinhei o que me era mais chamativo, uma frase ou uma palavra e fui salvar nos meus rascunhos, salvar para me deparar com aquilo tudo, sem querer, uma outra vez.
Depois de transformar pedaços de coisas em rascunho, escutei uma música que tocava aleatoriamente e dei risada ao sentir que ela também se conectava. Pouco mais tarde recebi o recado de um amigo que falava sobre uma música que também encaixava.
Oras, pensei comigo - aquilo não era grande coisa, eram músicas que falam sobre o amor, ou melhor, sobre a falta dele. Sendo assim, é mais do que possível nos deparar com isso o dia todo, toda hora.
Ainda assim, escrevo aqui. Faço isso com o que há de mais genuíno em mim, pois escrevo sem saber onde vou parar e o faço para não ignorar tantas coincidências bobas, já que eu gosto de destrinchar bobagens.
Então, voltando a falar sobre a falta do amor ou o seu avesso... O que seria o avesso do amor?... O desamor?
Procurei nos dicionários da internet para ter a certeza do que “desamor” quer dizer, e encontrei isso: Carência de amor; desafeição; desprezo; crueldade. Que engraçada a ordem que organizaram as palavras, parece que foram selecionadas e colocadas em ordem crescente de falta de amor, onde o menor nível é uma carência, um nível médio é a desafeição, um nível mais avançado o desprezo, e o pior de todos os níveis a crueldade.
Pois bem, é bem isso que todas essas coisas me gritavam:

“Peço a Deus que aumente a minha fé, peço tão ardentemente, é a depressão?
E esta dor não localizável, outra gripe?
Por pudor não me jogo no chão nem arranco os cabelos que já estão ralos na cabeça dolorida, mas onde está aquele bom invasor (o extraterrestre) que vai ensinar a desatarraxar a cabeça latejante para dependurá-la com delicadeza no cabide?”

            Ah, que dilema! Quantos e quantos vivem a esperar o ET (extraterrestre) de quem Lygia Fagundes Telles nos fala?
            Mostrando esse trecho a uma - grandeeee - amiga, eu disse que era uma epidemia essa coisa da falta do bom invasor, e ela rebateu me dizendo ser pandemia. Mas eu penso nisso com uma diferenciação, penso que tem muita gente desesperada para não ficar sozinha, muita gente sem foco, sem direção, que nem sabe o que quer, só sabe que quer alguém. Nesse boom de desespero, qualquer um serve.
            Escutei ontem em um debate a expressão “terceirização da felicidade”, e acho que posso utilizá-la bem aqui. Pessoas desesperadas, que não sabem ser feliz e querem deixar que alguém os faça por elas. “Toma aqui minha felicidade, sua responsabilidade agora”. É triste, mas é bem assim que acontece.
            Concordo com minha amiga então: há uma pandemia de desamor. Mas eu queria falar do outro lado do muro, do lado de quem não quer terceirizar nada, só somar e dividir sem fins lucrativos.
            Estou rodeada de gente cheia de amor, filhos amados, amigos amados, profissionais amados, mas “a minha gente” tem um vazio, um desamor, que é causado pela falta do extraterrestre.
            Para essas pessoas é bem mais difícil do que para o “clube dos desesperados” de se relacionar, eles sabem o que querem, eles podem não saber exatamente que tipo de ET querem – eles têm uma ideia, mas estão abertos a surpresas – porém sabem o que querem de um relacionamento.
            E aí, mora um perigo para quem tem um mundo cheio de segurança. É perigoso por que eu acho muitíssimo complicado largar a segurança do seu mundo por amor, acho que é necessário correr riscos, às vezes até é preciso, mas que é complicado é! E eu sou a última pessoa a julgar quem tem medo de se envolver.
Eu não vou falar sobre todas as coisas que me ocorreram e me fizeram pensar nisso, mas eu achei muito ilustrativa a cena de um filme que vi. Não vou dizer absolutamente nada sobre o filme em geral, apenas sobre uma situação que leva a última cena - que é perfeita, pura, linda.
Descrição básica do fato: - uma moça escuta música alta em seu apartamento. Alguém chama a polícia. O policial se encanta por ela e a leva para jantar. Ela propõe um trato: pede que eles falem a verdade, que sejam eles mesmos, que não finjam ser quem não são como provavelmente já fizeram antes, e ele aceita o trato. Num lapso ela vai embora. Vai embora dizendo que ela é isso e aquilo e que ele não vai gostar de como ela é.
E então na última cena o policial diz:

“Eu só queria vir aqui / vir aqui e dizer uma coisa / dizer uma coisa importante / uma coisa que você disse. / você disse que nós deveríamos dizer as coisas e fazer as coisas / não mentir, não esconder essas coisas que separam as pessoas. / Bem, eu vou fazer isso, eu vou fazer o que você disse / Eu não vou deixar isso passar / eu não posso te deixar / Agora você, você me escute agora / Você é uma pessoa boa / Você é uma pessoa boa e bonita / E eu não vou deixar você ir embora / e eu não vou deixar você dizer essas coisas / Essas coisas sobre o quão imbecil você é, e isso e aquilo / eu não vou admitir isso / se você quer ficar comigo / então fique comigo, entende?/

            Misturada com a voz do policial, uma canção toca ao fundo, fazendo um contraste íntimo com a situação:

“Você parece um encaixe perfeito, para uma garota que precisa de um torniquete. Mas você pode me salvar? Venha e me salve. Se você puder, me salve da classe dos esquisitos que suspeitam que nunca poderão amar alguém”

Eu não sei o quanto preciso discorrer sobre tudo isso aqui... na verdade só queria compartilhar um mundo, não dos desesperados por qualquer um, mas dos carentes de um ET. A moça do filme me parece alguém assim ao demonstrar como pode ser a reação de alguém que espera o ET. Ela tentou abrir o jogo, mostrar que não tem paciência para os famosos joguinhos do amor, mostrar que se é para ser, que já fique claro seu jeito de ser, porque ela não está desesperada por qualquer pessoa a ponto de fingir ser quem não é.
Da música, a palavra torniquete encaixa tão perfeitamente: uma tira de pano ou outro material que sirva para amarrar alguma parte do corpo, tentando assim controlar alguma hemorragia.
Outra música da trilha sonora do mesmo filme diz o seguinte: “eu sou apenas um problema para você resolver” e “não me escolha, pois qualquer gesto de carinho pode ser mortal”. Eu escuto isso e vejo pessoas como a moça do filme alertando os ET’s que surgem no caminho, alertando dos defeitos e também da carência, já que dependendo do nível de demonstrações de afeto pode ser mortal. Penso então, quem em sã consciência faz propaganda negativa de si mesmo diante do bom invasor?
Na verdade, pessoas como a moça do filme não estão falando mal de si ou alertando o quão problemáticas podem ser, elas só querem - inutilmente - se precaver de que fizeram o possível para não amarrar à toa um pano em cima da hemorragia, por que depois de amarrado o torniquete, é difícil soltar e quando solta dói e quando dói, você que quando aceitou o ET e estava em um estágio de desamor ajustado apenas na carência, pode se encontrar nos piores estágios do desprezo e da crueldade. Mesmo analisando tudo isso, eu não acho que se deva desperdiçar uma surpresa, uma chegada por medo de sangrar ainda mais, o poeta Fernando Pessoa já dizia que tudo o que chega, chega sempre por alguma razão.



quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Momentos cor de tomate



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                             “O único sentido íntimo das coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum”



Eu tenho o comum hábito de querer entender todas as surpresas da vida, as boas e principalmente as más, porque as boas a gente acaba entendendo como um presente e aceita, já ás más surpresas, o que fazer com elas? Tentar entender, certo? Não devo ser a única que suplica por explicações por aí.
Concordo que é bem sábio o entendimento como forma de aprendizagem. Acho que temos sim que entender o que se passa lá dentro, na cabeça e no coração para que possamos agir com mais sabedoria, sem futuros arrependimentos.
Já não sei se é sábio tentar entender os fatos, arranjar uma explicação para tudo. É o relacionamento que acabou de um dia para o outro quando tudo parecia ir bem, é uma amizade longa que já não faz mais sentido, é alguém muito querido que foi dessa para uma melhor, é uma doença que chega...
Meu tio ficou doente, coisa séria mesmo. Era o tal do câncer, doença que já judiou da minha e de tantas outras famílias. Aconteceu que eu fiquei neurótica tentando entender o motivo, parece que quando colocamos todos os nossos pensamentos numa coisa só, o que mais queremos é um esclarecimento e, nesse fluxo de pensamento sempre encontramos um motivo que encaixe.
O tio Lauro fez uma cirurgia há duas semanas. Na sala de espera do hospital estava a família todinha, angustiada e temerosa. Eu queria uma coisa plausível para confortar o pessoal, mas nada surgia, nenhum clarão, nenhum sinal divino.
Quando a cirurgia acabou ele foi para o quarto e, ali naquele quarto de hospital, eu achei que entendi alguma coisa. Ele tinha um brilho bem peculiar presente no olhar, me disse que ficou com medo de ser operado, mas que agora estava bem e confiante, estava com sede de vida! Ele dizia que ainda ia trabalhar muito, ficou relembrando – com aquele brilho no olhar – como ele fazia no trabalho. Contou-nos que o dia terminava e ele nem achava suficiente, que sempre queria ter uma hora a mais para trabalhar.
Ai eu pensei: é isso! Tem doença que mata, mas tem doença que faz viver! Que linda eu, tentando criar uma justificativa decente do motivo pelo qual deus, ou a vida, ou o universo - ou seja lá o que for - mais uma vez vem machucar minha família com essa doença das células.
A minha justificativa nem foi compartilhada, era uma coisa para mim mesma, para eu me sentir confortável e aceitar que ele realmente só precisava passar por aquilo para aprender a viver com mais brilho no olhar. 
Mas não sei se fez sentido. Em outros casos pode até servir, com alguma outra pessoa que não tenha sensibilidade para olhar para os encantos da vida. Mas, meu tio tinha sim - depois daquela cirurgia - um brilho bem especial no olhar! Quem não teria? Você entra num centro cirúrgico com medo de nunca mais voltar, e volta. Claro que tudo vai brilhar... mas eu já vi os olhos dele brilharem antes, eu seria hipócrita de dizer que ele não tinha encantamento na vida ou que ele é um cara de mal com a vida.
Ás vezes o chamamos de Zé Criquinha, igual chamam a mim de anti-social. Famílias têm dessas, uma vez chorão quando pequeno será chamado de chorão pro resto da vida, quantos amigos magros temos e não entendemos o porquê o apelido dele em casa é "Gordo"?
Meu tio é um chato mesmo, eu admito. Ele odeia que desperdicemos momentos em família para ficar no computador, pode apostar que se estão todos na cozinha comendo, bebendo, conversando e alguém se manda pro computador, ele vai falar tanto, mas tanto, que ninguém aguenta.
Dos cinco filhos da dona Rose e do seu Lauro - meus avós - ele é o único que diz umas boas verdades, doa a quem doer. Odeia probleminhas inventados e é fã do rock brasileiro dos anos 80.

Tio Lauro me mostra as fotografias do Rio de Janeiro e de Florianópolis - onde ele trabalhou. Ele ama essas cidades costeiras! Não mostrava fotos por mostrar, mas sim porque tem dom e olho de fotógrafo. Quer coisa mais encantadora que ter olho de fotógrafo, quê enxergar a vida de um ângulo especial?
Ele sempre diz: “Bru, eu sei que você morou lá nas gringas, mas duvido que lá tivesse um barzinho de frente pro marzão azul, a areia branquinha branquinha e o Cristo logo ali com os braços abertos”. Fala assim, do Rio, de Floripa, Guaraqueçaba, Morretes, Antonina como quem visualiza com amor. Ele vê poesia na vida!
Vai ver é coisa de família essa coisa da poesia nos olhos. 
Esses dias eu estava na cozinha e minha mãe quase chorou cortando um tomate, sim um tomate e não cebola! Ela chamou meu outro tio, Luciano,  para ver o vermelho radiante do tomate que ela cortava, os dois ficaram ali perplexos olhando o tomate, balançavam a cabeça como se reverenciassem o tomate. Poesia!
Pensando nisso, lembrei de uma frase com a qual esbarrei na internet esses dias, que dizem ser de Leonardo da Vinci “A mais nobre paixão humana é aquela que ama a imagem da beleza em vez da realidade material. O maior prazer está na contemplação”.
É isso então: é nesses momentos cor de tomate que temos que nos apegar mais, temos que reparar mais, curtir mais, ao invés de procurar respostas para as coisas que não têm explicação, porque o conforto sempre vem, mesmo sem resposta, o abraço da vida sempre chega.
Quando meu tio saiu do hospital e foi para casa, fui visitar ele e passar o dia com a minha família. Saindo de casa na pressa, costumo catar uns livros e jogar na bolsa, peguei um livro do Fernando Pessoa: poesia!
Na mesma cozinha que vi minha mãe contemplar um tomate, peguei o livro e comecei a ler para o meu avô, enquanto ele enxugava a louça. Li os textos que me fizeram ver que não existe motivo para as coisas e li outros que diziam que o único motivo plausível é amar a vida.
Para falar do meu tio ainda, ele vai ficar bem, ele desacelerou a vida para se cuidar e o mais importante, com ou sem doença, ele está bem acompanhado! Tem a companhia de uma família que morre de amor por ele, e o mais importante: está acompanhado do seu próprio brilho.
Segue abaixo os textos que me fizeram parar de procurar respostas.

De Fernando Pessoa,

Sobre contemplação
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar nelas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
e luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Sobre o sentido das coisas...

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.
***

Ressignificando nossas relações

Escrevo-te assim como quem escreve para alguém que nunca amou. Não te amei, mas tentei. E eis que, por fim, surge algum tipo de amor. Não to...