sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Neste natal, pratique algo que atrapalhe sua própria vida

    Em abril deste ano, fui assaltada perto de onde moro, no centro de Curitiba. Só me levaram o celular e um pouco de minha sensação de liberdade de andar por aí. No mesmo dia prenderam meu assaltante e me perguntaram se eu gostaria de apresentar queixa. Me explicaram no que isso implicaria: um dos policiais me disse que eu ficaria empenhada tendo de ir à julgamento. Outro me disse: "se você fizer isso, ele vai preso por conta de um celular". Liguei para algumas pessoas pedindo opinião, estava indecisa e desprovida de conhecimentos nesses casos. Resolvi que o correto era sim apresentar a queixa. Achar que aquele moço seria preso por que eu quis e por conta de um celular, fazia me sentir a pior das criaturas, pois, para ser sincera, meu celular significava nada!
    Na delegacia, conversei melhor com o delegado sobre este meu sentimento. Ele me disse que eu deveria fazer isso, não pelo celular, mas pelo assaltante que já era um alguém sem existência, tomado pelo vício do crack e que poderia ter me matado se eu não tivesse nada para entregar-lhe. O moço tinha mais cinco registros de assaltos como o meu. As pessoas registravam, mas não queriam se comprometer como testemunha, e ele era solto então. Se alguém antes houvesse representado, eu não precisaria ter passado por isso, foi o que o delgado argumentou. Decidi assim - com toda a ciência do que isso significava - representar como testemunha. Ele foi preso e eu fui para minha casa com medo de sair e ser assaltada novamente, tão presa quanto ele: ambos vítimas da sociedade. Fui intimada para comparecer à audiência e não pude de jeito algum comparecer naquele dia. Então o oficial me intimou para uma segunda audiência, foi grosso comigo, disse que se desta vez eu não comparecesse seria emitido meu mandato de prisão. Me disse ainda que eu brinquei e não dei importância da primeira vez e, portanto, teria de pagar uma multa por isso. E assim, de vítima eu estava à um passo de ser companheira de cela do meu assaltante.

       Eu viajei e tentei adiar a audiência, mas não teve jeito, tive de comparecer porque me ameaçaram de responder processo por desobediência e ser presa sobre fiança. Chorei de raiva, senti como se tudo o que eu fiz para ajudar a sociedade, ajudar o menino que trocou meu celular por uma pedra de crack - já que até a prisão era melhor que o limbo em que ele vivia - senti que isso se voltou contra mim. Foi uma revolta e tanto, tive de gastar dinheiros não programados para voltar de viagem e voltar novamente, tive de perder um dia de férias com o meu pai, fui tomada por uma sensação de falta de liberdade. Fui à audiência. Dei meu depoimento, exatamente como fiz na delegacia no dia do roubo, só que dessa vez não sentia que fazia algo importante para o bem de todos... Até descobrir que o réu estava solto desde outubro e que deveria estar presente ali hoje, mas não havia comparecido. Quis saber mais sobre ele... O nome dele é Lucas, ou ao menos acham que é, pois ele não tem documentos e tudo o que sabem dele é pelo depoimento que deu. O promotor, que fez minha defesa, me disse que eu fiz um bem a vida do rapaz, que ele estava perdido nas drogas e que o tempo em que ficou preso ele comeu e voltou a ter saúde, até engordou, além de não usar drogas. Me contou também que o juiz, ali presente, havia conseguido uma vaga em uma clínica de recuperação para ele, e que o Lucas estava feliz com isso, até prometeu se internar, assim como prometeu comparecer naquela audiência.

Vendo minha mudança de fisionomia e minha vontade de saber mais, o juiz me contou sobre as histórias que Lucas contou à eles. Sobre o abandono da mãe, a vida pulando de abrigo em abrigo e a perda do direito de morar em abrigos após completar 18 anos. E, por fim, a vida como morador de rua e viciado em crack, até o dia em que foi preso, aos 20 anos. O juiz ainda me disse que se as histórias não são verídicas, o menino estava perdendo dinheiro, pois sabia atuar e emocionar perfeitamente.
    Quando fui para o fórum, no começo desta tarde, estava triste por ter a certeza de que nunca mais em minha vida - se passasse por outra situação como essa - representaria como testemunha. Fiquei triste de decidir isso por acreditar que é nosso dever de cidadão para o progresso da sociedade. Mas decidi que não testemunharia mais, por ter as audiências marcadas em datas que atrapalhavam a minha vida, não foi por preguiça ou medo como julgou o oficial de justiça, foi porque realmente foram datas nas quais eu tinha outros compromissos me chamando, e eu não fiquei nenhum pouco feliz com o fato desta audiência atrapalhar a minha vida. E agora, após ouvir tudo isso sobre o Lucas, só consigo pensar que ao menos eu tive, tenho e seguirei tendo um vida. 
    Ninguém sabe ainda se ele compareceu à clínica, provável que não, já que não esteve presente na audiência. Mas só o fato de ter dado à ele a oportunidade de conseguir se recuperar, ter dado à ele a possibilidade de contar a história da vida dele - que foi o que fez o juiz o achar merecedor de chances - só por isso, já valeu à pena ter ido, ter atrapalhado a minha vida.
    Eu não me canso de olhar para a vida dos outros e ver que sempre devo agradecer pela minha, pelo que tenho e por quem eu tenho, ou talvez só por ter alguma coisa. É um exercício que eu faço sempre... e de repente, me vejo toda cega e cheia de egoísmos, olhando somente para a minha vida.

      Foi por egoísmo que as outras vítimas do Lucas não o fizeram ir preso anteriormente, o que evitaria outros assaltos e o daria essa chance de ficar livre da droga e ganhar a vaga na tal clínica. Era exatamente assim que eu não queria ser quando decidi levar isso adiante, e foi exatamente assim que eu acabei sendo.

    Não sei se o Lucas está livre das drogas, acho difícil, assim como eu não estou livre de egoísmo, mesmo que tente estar. Fazer alguma coisa, na prática, é sempre mais difícil do que na teoria. Me sinto "gente" de ter passado por tudo isso, e acho que talvez eu nunca me desse conta da importância disso se não estivesse ocupada nas datas em que me intimaram. Vai ver aqui sou eu e minha mania de achar que tudo acontece exatamente como devido, mas eu realmente acredito que essa é a forma que a vida age para me transformar em uma pessoa melhor quando eu não faço o trabalho sozinha. É uma conclusão boba, mas não consigo fugir disto agora, aliás, me enfio mais nisto dizendo que é meu presente de natal: terminar o ano menos egoísta. E meus votos de natal para todas as outras pessoas que, assim como eu, falam sobre fraternidade - é que cada um que fale em fraternidade pratique algo que atrapalhe sua própria vida. 

Feliz natal, para mim, para vocês e para o Lucas.

Ressignificando nossas relações

Escrevo-te assim como quem escreve para alguém que nunca amou. Não te amei, mas tentei. E eis que, por fim, surge algum tipo de amor. Não to...