quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Na parede da memória

Depois do almoço de domingo, enquanto comíamos bolo para celebrar o último aniversário da década dos vinte de minha irmã, alguém trouxe duas caixas de sapato cheias de pequenos álbuns fotográficos. Foi uma alegria estranha. Reparei todos suspirarem um suspiro pesado. Um ar de afeto e consolo. Um misto de dor e flor. Cada um com um álbum à mão. Uma gritaria: todos queriam atenção para a pérola que haviam encontrado. Tínhamos um quê de historiadores.
Minha irmã encontrou uma viagem que fez com o pessoal do colégio, eu encontrei meu pai com cabelo Black Power anos 70, alguém achou uma pessoa não identificada em outra foto. “Quem é esse? Meu Deus! Que homem! Quem é, quem é?” Vira um mistério! ... Minutos mais tarde minha tia lembra: é um afilhado da minha falecida avó. Moço que foi para a Itália e virou padre. Benzadeus!
Pouco depois, me acho ali. Com lágrimas escorrendo e a boca de quem grita. Ninguém me ouvia? Ninguém me levava à sério? Por que foi mais engraçado do que trágico? Por que mereceu mais uma foto do que um abraço? Penso na infância, no ato de ser criança. Reparo em meus dois sobrinhos rindo em nossa volta. Ambos curiosos. “Laura, olha você aqui na barriga da sua mãe!”, eu falei enquanto ela mostrava outra pérola. “Tia, como faço pra colocar essa foto no meu Orkut?”
Escuto meu tio dizer que meu primo se parece com o meu irmão. Minha mãe discorda, acha que ele é a cara da minha prima. Mostram a foto à todos, meio que caçando votos. Quem concorda com quem? - Eu descubro que quem é extremamente parecido com meu irmão é o meu sobrinho. Nunca me daria conta de tal semelhança não fosse por essas abençoadas fotos. Que alegria engraçada! Estamos realmente conectados. Somos realmente uma família daquelas: cara de um, focinho do outro.
            Quem cresceu, envelheceu, engordou, emagreceu e etc. Foi assim a tarde toda, todos interagindo, desvendando, relacionando um com o outro e se conectando. Conectados pelo passado.
            Conectados pelo passado...
Fiquei refletindo então sobre o passado e qual sua significância em nosso presente. No passado hospedamos nossa história, até aqui escrita. E ter uma história é fundamental, seja ela qual for. É preciso se perder no passado para se encontrar no presente. Saber quem fomos e de onde viemos. Para que assim, guiados pela história do passado, decidamos quem queremos e não queremos ser, para onde vamos e para onde não desejamos voltar mais.
Deixamos tantas coisas sob escombros. Desabadas, arruinadas, soterradas. Há escombros por todas as vidas, na minha e na sua. Divago e me pergunto até que ponto devemos nos perder em lembranças nítidas ou borradas? Se, explorar o passado, é uma aventura que dá vertigem, o que fazer então? Mergulhar em tudo o que já não é ou ignorar? “Pra que lembrar essa medonha história? Eis-me aqui, recomposto, sem um ai. Sou o meu próprio Frankenstein – olhai!”.
Aceito este convite de Mario Quintana para olhar meu próprio Frankenstein. Decido por mergulhar - sem afundar - no passado. Tomo tal decisão por acreditar que tudo o que eu sou hoje é produto do que já fui. Nascemos e morremos tantas vezes em vida. Somos os melhores pedaços de cada uma das nossas mortes. Mosaicos, colchas de retalhos ou – como cantou Elis Regina - quadros em uma parede de memória.
Olho a parede e me vejo com um, dois, três, dez, quinze anos. Olho-me, e tento entender o que sobrou dos tantos eus que fui. O que ficou? O que foi? Quantas inocências perdi? Quantas ainda tenho? Analiso meus quadros preferidos, e também os mais desagradáveis. Quero despendurar alguns, mas estão exatamente no centro, ligando uma coisa a outra, fazendo sentido nas transições. Que conforto: tudo foi essencial... Fito ainda a parede. Tantos quadros. Tantas fases desconexas. São os melhores quadros que doem! Os ruins me fazem bem, me fizeram chegar onde estou e aprender o que aprendi, nem me causam dor. Na verdade até me causam bem estar, me fazem heroína por lembrar o que foi superado. Já os vilões do passado, são sempre os nossos melhores quadros. Tenho uma coleção de verdadeiras obras de arte que me rasgam por dentro, fazem escorrer sangue e sujam minhas paredes. Verdadeiras feridas vivas, escondidas pela beleza das cores de uma alegria única e já distante.
Assim constato que o passado vive em mim. Eu não vivo no passado, mas ele vive em mim. E, contudo, me valeu a aventura. Vi coisas quais quero e posso resgatar. Por outro lado, é uma calmaria perfeita entender que realmente tive de deixar para trás o que já não me cabia mais. Aquela calça jeans, aquele jeito de ser... Não adianta forçar, algumas coisas não se encaixam em nosso ‘novo eu’. Simplesmente não nos cabem mais.
Antes de regressar ao presente, volto-me ao último quadro. É um retrato perfeito de meus familiares reunidos vasculhando fotografias. Minha mãe olha uma foto com cara de saudade boa, saudade de coisa bem vivida.
Entendo por fim, que rever um bem viver é o que torna um passado mais ameno, sem feridas, sem escombros. É o que qualifica e dá sentido à nossas vidas: viver coisas bem vividas.

2 comentários:

gil disse...

Alguns de nós somos tão obcecados pelo passado que morremos disso. É a atitude do poeta que nunca encontra o paraíso perdido e é de fato a situação dos artistas que trabalham por um motivo que ninguém consegue apreender. Talvez queiram reconstruir algo do passado para exorcizá-lo. É que, para certas pessoas, o passado tem tal atração e tal beleza...

Beijo, Bruna.

Anônimo disse...

Bu!

É sim, somos o extrato do que sobreviveu ao nosso passado, ao que foi bom, ao que foi triste, à dor que por um segundo nos matou, ao que foi tão lindo que quase tirou o fôlego!

E a cada momento a gente é como Vinícius canta:

"... eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações..."

É lindo, né? Tudo é!

Kari

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