quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Momentos cor de tomate



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                             “O único sentido íntimo das coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum”



Eu tenho o comum hábito de querer entender todas as surpresas da vida, as boas e principalmente as más, porque as boas a gente acaba entendendo como um presente e aceita, já ás más surpresas, o que fazer com elas? Tentar entender, certo? Não devo ser a única que suplica por explicações por aí.
Concordo que é bem sábio o entendimento como forma de aprendizagem. Acho que temos sim que entender o que se passa lá dentro, na cabeça e no coração para que possamos agir com mais sabedoria, sem futuros arrependimentos.
Já não sei se é sábio tentar entender os fatos, arranjar uma explicação para tudo. É o relacionamento que acabou de um dia para o outro quando tudo parecia ir bem, é uma amizade longa que já não faz mais sentido, é alguém muito querido que foi dessa para uma melhor, é uma doença que chega...
Meu tio ficou doente, coisa séria mesmo. Era o tal do câncer, doença que já judiou da minha e de tantas outras famílias. Aconteceu que eu fiquei neurótica tentando entender o motivo, parece que quando colocamos todos os nossos pensamentos numa coisa só, o que mais queremos é um esclarecimento e, nesse fluxo de pensamento sempre encontramos um motivo que encaixe.
O tio Lauro fez uma cirurgia há duas semanas. Na sala de espera do hospital estava a família todinha, angustiada e temerosa. Eu queria uma coisa plausível para confortar o pessoal, mas nada surgia, nenhum clarão, nenhum sinal divino.
Quando a cirurgia acabou ele foi para o quarto e, ali naquele quarto de hospital, eu achei que entendi alguma coisa. Ele tinha um brilho bem peculiar presente no olhar, me disse que ficou com medo de ser operado, mas que agora estava bem e confiante, estava com sede de vida! Ele dizia que ainda ia trabalhar muito, ficou relembrando – com aquele brilho no olhar – como ele fazia no trabalho. Contou-nos que o dia terminava e ele nem achava suficiente, que sempre queria ter uma hora a mais para trabalhar.
Ai eu pensei: é isso! Tem doença que mata, mas tem doença que faz viver! Que linda eu, tentando criar uma justificativa decente do motivo pelo qual deus, ou a vida, ou o universo - ou seja lá o que for - mais uma vez vem machucar minha família com essa doença das células.
A minha justificativa nem foi compartilhada, era uma coisa para mim mesma, para eu me sentir confortável e aceitar que ele realmente só precisava passar por aquilo para aprender a viver com mais brilho no olhar. 
Mas não sei se fez sentido. Em outros casos pode até servir, com alguma outra pessoa que não tenha sensibilidade para olhar para os encantos da vida. Mas, meu tio tinha sim - depois daquela cirurgia - um brilho bem especial no olhar! Quem não teria? Você entra num centro cirúrgico com medo de nunca mais voltar, e volta. Claro que tudo vai brilhar... mas eu já vi os olhos dele brilharem antes, eu seria hipócrita de dizer que ele não tinha encantamento na vida ou que ele é um cara de mal com a vida.
Ás vezes o chamamos de Zé Criquinha, igual chamam a mim de anti-social. Famílias têm dessas, uma vez chorão quando pequeno será chamado de chorão pro resto da vida, quantos amigos magros temos e não entendemos o porquê o apelido dele em casa é "Gordo"?
Meu tio é um chato mesmo, eu admito. Ele odeia que desperdicemos momentos em família para ficar no computador, pode apostar que se estão todos na cozinha comendo, bebendo, conversando e alguém se manda pro computador, ele vai falar tanto, mas tanto, que ninguém aguenta.
Dos cinco filhos da dona Rose e do seu Lauro - meus avós - ele é o único que diz umas boas verdades, doa a quem doer. Odeia probleminhas inventados e é fã do rock brasileiro dos anos 80.

Tio Lauro me mostra as fotografias do Rio de Janeiro e de Florianópolis - onde ele trabalhou. Ele ama essas cidades costeiras! Não mostrava fotos por mostrar, mas sim porque tem dom e olho de fotógrafo. Quer coisa mais encantadora que ter olho de fotógrafo, quê enxergar a vida de um ângulo especial?
Ele sempre diz: “Bru, eu sei que você morou lá nas gringas, mas duvido que lá tivesse um barzinho de frente pro marzão azul, a areia branquinha branquinha e o Cristo logo ali com os braços abertos”. Fala assim, do Rio, de Floripa, Guaraqueçaba, Morretes, Antonina como quem visualiza com amor. Ele vê poesia na vida!
Vai ver é coisa de família essa coisa da poesia nos olhos. 
Esses dias eu estava na cozinha e minha mãe quase chorou cortando um tomate, sim um tomate e não cebola! Ela chamou meu outro tio, Luciano,  para ver o vermelho radiante do tomate que ela cortava, os dois ficaram ali perplexos olhando o tomate, balançavam a cabeça como se reverenciassem o tomate. Poesia!
Pensando nisso, lembrei de uma frase com a qual esbarrei na internet esses dias, que dizem ser de Leonardo da Vinci “A mais nobre paixão humana é aquela que ama a imagem da beleza em vez da realidade material. O maior prazer está na contemplação”.
É isso então: é nesses momentos cor de tomate que temos que nos apegar mais, temos que reparar mais, curtir mais, ao invés de procurar respostas para as coisas que não têm explicação, porque o conforto sempre vem, mesmo sem resposta, o abraço da vida sempre chega.
Quando meu tio saiu do hospital e foi para casa, fui visitar ele e passar o dia com a minha família. Saindo de casa na pressa, costumo catar uns livros e jogar na bolsa, peguei um livro do Fernando Pessoa: poesia!
Na mesma cozinha que vi minha mãe contemplar um tomate, peguei o livro e comecei a ler para o meu avô, enquanto ele enxugava a louça. Li os textos que me fizeram ver que não existe motivo para as coisas e li outros que diziam que o único motivo plausível é amar a vida.
Para falar do meu tio ainda, ele vai ficar bem, ele desacelerou a vida para se cuidar e o mais importante, com ou sem doença, ele está bem acompanhado! Tem a companhia de uma família que morre de amor por ele, e o mais importante: está acompanhado do seu próprio brilho.
Segue abaixo os textos que me fizeram parar de procurar respostas.

De Fernando Pessoa,

Sobre contemplação
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar nelas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
e luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Sobre o sentido das coisas...

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva -
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo
(E nunca a outra coisa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.
Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão -
Porque não tinha que ser.
***

2 comentários:

m.olívia disse...

eu queria fazer uma confissão: eu leio teu blog todos os dias.
todos os dias que vejo atualizações, eu venho correndo ver: porque esse teu dom de escrever não é por acaso.

é para me confortar, me alertar, me divertir, encher meu dia de beleza.

continua, por favor?

hehe
sobre esse post, confesso também que imprimi aquela poesia do Pessoa. Nunca a tinha 'sentido' (pq poesia não se lê, se sente.)
Vou repassá-la, com certeza.

Um abraço para o teu tio, desejo as mais sinceras melhoras e os maiores brilhos que ele possa enxergar.

Beijo, minha amiga iluminada.

m.olívia disse...

ah! vou guardar esse parágrafo na minha cabeça, e sempre que precisar eu vou buscá-lo.
o abraço da vida sempre vem.

"é nesses momentos cor de tomate que temos que nos apegar mais, temos que reparar mais, curtir mais, ao invés de procurar respostas para as coisas que não tem explicação, porque o conforto sempre vem, mesmo sem resposta, o abraço da vida sempre chega."

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