segunda-feira, 28 de março de 2011

Amando nossa própria sombra

Se amamos o que projetamos, qual o papel do nosso par?

Você tem uma família maravilhosa, que está sempre presente e te ama, isso sem dúvidas! Você não tem muitos amigos, mas o suficiente para sentir que sua coleção está completa. E, ainda assim, com tudo isso, você guarda consigo uma carência específica. Acontece que num dia qualquer, num lugar qualquer, você conhece alguém. Alguém que transforma um dia e lugar ordinário em seu lugar e dia favorito. Vocês ficam juntos e tudo é simplesmente perfeito. Até mesmo as imperfeições se tornam assim... perfeitas. Você derruba sorvete de morango na roupa clara, e nem isso mancha o tempo. Vocês contornam o caos sem dificuldades. O tempo para, tudo para.

Depois disso tudo, de se sentir tão completo, você volta para casa com seu mundo chacoalhado e uma cratera na alma. Então pergunta a si mesmo o porquê, logo você que estava razoavelmente bem até então, logo você, de repente assim, está invadido de um desassossego imenso. Como pode a presença de alguém, um simples movimento de alguém, te deixar assim, com uma mortificação dessas?

Oras, ninguém tem tanto poder assim não. Somos nós, que inconscientemente damos tal poder a outrem... Existem várias explicações para isso. Todas elas tentam explicar o motivo pelo qual, durante as idas e vindas da vida, procuramos um par.

Para quem gosta de uma explicação espiritual, pode-se dizer que quando chegamos “neste plano” esquecemos de uma de nossas partes, por isso nossa eterna carência vem da saudade que sentimos de nossa própria alma, ou mais ou menos isso.

Tem também o mito do Andrógino, de Platão, que fala sobre seres que tinham os dois sexos e, por isso, eram completos, inteiros. Quando estes seres Andróginos começaram a agir como deuses, sentindo-se acima do bem e do mal, provocaram a fúria de Zeus, que decide por enfraquecê-los, dividindo-os em dois. Assim, os Andróginos divididos, passam a vida à procura de sua outra metade. -- Eu que nunca entendi como o Pink Floyd fez o The Dark Side of The Moon nos anos 70, fico pasma com a genialidade de mitos como estes – lembrando que foram descritos há mais de dois mil anos, como narrativas de caráter simbólico que eram a forma de expressar o entendimento da vida em geral naquele tempo.

Para quem precisa de algo mais consistente que isso, mais científico, vide o psicanalista Carl Jung. Para Jung, tudo se explica por uma simples palavra: “projeção”. Quem falou sobre isso primeiramente foi Freud, mas pelo que entendi, foi Jung quem dissecou o significado disso. Vou sintetizar as conclusões dele aqui.

Quando estamos no ventre da mãe, temos a sensação de que somos completos, plenos. Ao nascer, sofremos um corte físico, o do cordão umbilical. E, conforme vamos crescendo, vamos sofrendo uma espécie de corte psíquico que divide nossa mente em consciente e inconsciente. Por isso, crescemos com uma lembrança de que um dia já tivemos a sensação de onipotência, e não sossegaremos enquanto não a recuperarmos.

Identificamo-nos pela consciência. Tudo o que sabemos e acreditamos a nosso respeito faz parte de nossa consciência. Já, no inconsciente, há muito do que somos e não sabemos ou ignoramos. Toda a falta que sentimos na vida, toda nossa carência de ter outra pessoa conosco para nos sentirmos completos é, na verdade, a falta de elementos de uma parte nossa que está oculta: o inconsciente. Está é a razão, segundo Jung, de tentarmos encontrar outra pessoa: para projetar os elementos do nosso inconsciente. Achar que outra pessoa possui algo que nos falta é então um devaneio...
"Mas o amor é apenas uma ilusão. A história que alguém compõe mentalmente sobre outra pessoa”, já tentava explicar Virginia Woolf.

Então, parece que vivemos uma vida toda de relacionamentos imaginários que sobrevivem apoiados em nossa própria sombra. (Meio triste ou frustrante?) - Criamos uma história, compomos alguém mentalmente para conseguirmos enxergar neste alguém o que precisamos. Na maioria das vezes, esse objeto de amor nem tem mérito diante das qualidades que lhe damos e, quando possui alguma das qualidades que o atribuímos é em menor intensidade do que imaginamos.
No final das contas, tudo o que achamos sobre o outro é o que achamos sobre nós. Todo sentimento grandioso que nutrimos por alguém, na realidade, nutrimos por nós mesmos. Os amores platônicos tendem a ser tão bonitos por isso, pois quanto maior o espaço para projeções assim, quanto menos se conhece sobre o objeto do amor, mais espaço temos para rechear uma história, mais espaço para preencher a outra pessoa com o que precisamos para nos sentir completos, preenchendo este outro de uma parte nossa mesmo. Isso explica o porquê, quem supomos amar, parece exercer um poder gigante sobre nós: pois necessitamos de um mergulho profundo que nos ponha em contato com nossa parte mais funda e, com a partida desta pessoa, desta ilusão, estaríamos novamente na desesperadora superfície.                                                   

Eu imaginava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você. Eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? (Caio Fernando Abreu)

Saber disso, ter esse entendimento, não nos torna livres de procurar. Saber que essa metade está dentro da gente, não destrói o desejo de querer procurar algo fora de nós. Ainda assim, entender sempre liberta e eu nem sei se conseguiria explicar o que essa liberdade significa, mas insisto que muito muda quando entendemos (e isso vale para tudo!).

Sendo assim, tendo tudo o que precisamos em nós mesmos, fico me perguntando qual é o papel do outro em nossa vida? Esse par que sempre buscamos, o que sinceramente queremos dele? Vai ver o caminho é ir buscando por nossa saudosa metade dentro da gente e ir deixando para o objeto de amor outro tipo de relação?! Talvez uma relação onde percebemos o outro como diferente de nós mesmos e, sendo assim, estabelecemos uma relação de amor mútuo, compartilhando as aflições que temos com nós mesmos e em nossas vidas... Será que é isso? Ou vai ver só queremos nos sentir aconchegados igual nos sentíamos no ventre materno. Aquela sensação primitiva de calor e acolhimento. É uma coisa bem mais instintiva que racional. “O eterno acalentar não destrói a ilusão” - Não existe entendimento capaz de acabar com o desejo por esse embalo do qual Virginia Woolf fala sabiamente. Quem sabe, tudo o que a gente quer do outro, é um cheiro reconhecível, um cantinho quente, um porto seguro... Não sei!


4 comentários:

K. disse...

Bru, veja, vai cair no amor mamífero da filósofa!

m.olívia disse...

já reparou que a gente tá sempre em busca de respostas para o amor?!

amei esse texto.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
gil disse...

Mistérios da entropia. A gente é uns momentos mais, outros menos; fissurado por essa coisa de vertigem, perigo, novidade, crise e catapof. Será que alguma hora alivia ? Tbém queria saber, Bru. Beijo !

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