quarta-feira, 14 de julho de 2010

O mendigo americano

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Estava eu, em algum dia de abril de 2008, me sentindo mais solitária que nunca, esperando a minha vez de partir em uma sala de espera da Union Square – principal estação de ônibus de Los Angeles – que mais parecia uma igreja ou um mosteiro, acentuando o ar de solidão e angústia que me povoavam.
Enquanto eu aguardava, torcia para que em minha próxima parada, eu conhecesse pessoas menos supérfluas do que as que conheci hospedada em um Hostel de Hollywood. De repente avistei uma esperança: um rapaz pedindo esmola.
Ele insistia com as poucas pessoas que aguardavam, pedindo a todos, menos para mim. Eu parecia invisível ou sei lá o quê. Eu nunca quis tanto que alguém me pedisse esmola. Levantei e fui até a porta. Faltavam mais de duas horas até o meu ônibus chegar e então pensei em sair para comer. Los Angeles é uma cidade tão assustadora à noite que não tive coragem de atravessar aquela imensa avenida e me comprar alimento. Para ser sincera, nem sei se eu estava com tanta fome ou se o gesto de me levantar e ir até a porta foi um meio de me fazer visível ao mendigo.
Ele me enxergou e me pediu dinheiro para comer. Eu disse que só me restavam dez dólares e que eu até sairia para comer algo, mas tinha medo. Ele me ofereceu companhia e apesar de eu confiar - sem motivo algum – nele, achei melhor não arriscar. Eu respondi não, ele respondeu obrigado e se retirou.
Senti-me a última das criaturas, tudo o que ele queria de mim era o dinheiro para comer e nada mais. Eu queria mais dele, queria saber da história dele, da vida dele, queria compartilhar algo e por isso me voltei até ele e propus: “tenho dez dólares, dá para comprar dois sanduíches e duas bebidas para alimentar nós dois. Se eu te der, você compra e me traz?”. Ele aceitou.
Passou um tempo e ele não voltou. Pensei que ele embolsou o dinheiro e me deixou com fome ali. Ele acabou voltando e cumprindo o combinado. Entregou a minha parte e agradecido se despediu. Pedi que ficasse e “jantasse” comigo. Ele sorriu aceitando. Foi o primeiro contato mais sincero que tive dele. Anteriormente, o único motivo pelo qual ele me pediu o dinheiro e não quis mais nada de mim era – provavelmente - porque nunca ninguém se interessava por ele. Enfim ele percebeu que eu, por motivos alheios à ele, e de alguma forma, me importava.
O que realmente abriu um espaço para as duas horas de conversa que eu tive com aquele rapaz, chamado Brian, foi quando ao terminar seu sanduíche eu ofereci a outra metade do meu e ele recusou. Eu fiquei insistindo, mas ele não estava fazendo charme, ele simplesmente não come “resto” dos outros.
Para ser mais exata ele disse em inglês: “I don’t eat after people, and I don’t drink after people” - que não exatamente quer dizer comer resto, mas é o mais próximo que cheguei ao traduzir. Ele simplesmente não comia/bebia depois dos outros, assim como eu não gosto de compartilhar meu copo e alimentos nem mesmo com o meu irmão - ele não gostava também, ué.
Isso me espantou muito no momento e eu nem soube como disfarçar. Como forma de contestação, como se ele tivesse alguma culpa, falei sobre como os mendigos vivem em meu país, contei que comem resto do lixo, que comem qualquer coisa comível para não passar fome. Logo eu, que não gosto de compartilhar o copo com outros, espantada com o fato de o mendigo americano ter, como eu, a opção de escolha. Por que eu podia e ele não? Por que eu fiquei espantada?
Brian me perguntou mais sobre a vida dos mendigos aqui e ao compreender um pouco mais, me explicou o quão diferente é de lá. Disse-me que os homeless – nome dados aos mendigos americanos, são como o nome sugere: homeless ou em uma tradução literal “sem casa” e somente isso. Eles não têm casa, não  têm lugar para dormir, mas têm onde comer, têm onde tomar banho e ele até mencionou como complemento que eles – o governo, até providenciam barbeador para os homeless terem uma boa aparência.
Ele disse que tem direito a comida também, mas somente até certo horário. Disse que geralmente tentam dormir nas estações de ônibus e nem sempre conseguem, pois os guardas não deixam. Disse-me que como ele, muitos homeless não trabalham porque acham que as pessoas devem ganhar mais que US$ 10-12 por hora de trabalho e não se sujeitam a ganhar menos do que isso. Eu até tive um insight nesse momento, pois passava por nós a moça limpando o chão da estação e provavelmente ela não era americana, tinha traços de uma moça mexicana.
De repente o guarda pediu o bilhete do meu amigo homeless. Brian me contou baixinho que seria expulso por não ter um e eu tentei intervir. Eu disse ao guarda que Brian aguardava comigo a chegada do ônibus. O guarda insistiu em ver o tal bilhete e eu questionei o motivo. Explicou-me que só pode ficar na sala de espera quem está aguardando o ônibus. Eu disse que então ele deveria checar os bilhetes de todos que estavam sentados antes de pedir os nossos. 
Não é de minha natureza brigar com qualquer espécie de polícia no meu país, quanto mais em terras estrangeiras, mas eu não poderia deixar que ele tirasse o Brian de lá, eu precisa pensar que ele conseguiria dormir ali naquela noite e que eu teria mais um tempo para conversar com ele. O guarda se afastou e esqueceu a história dos bilhetes e Brian me avisou que o guarda queria me proteger, pois achou que eu estava sendo incomodada.
Meu ônibus chegou. Eu já gostava do Brian, saber que aquela era possivelmente a única vez na vida que eu o veria era difícil demais para mim. Em um lapso, perguntei se ele tinha e-mail, afinal não era ridículo demais perguntar ao mendigo se ele tem e-mail depois dele ter revelado tanto sobre o acesso que tem à tantas coisas, certo?
Para minha felicidade ele tinha acesso à internet. Entreguei em um pedaço de papel meu endereço de e-mail e recebi a promessa de que ele me escreveria mandando notícias.
Ele nunca me escreveu e talvez nunca escreva, mas se um dia o fizer, quero dizer a ele que sempre que me sinto tão angustiada quanto me senti naquele dia, lembro-me dele. Quero dizer que lembro-me dele sempre que vejo um morador de rua ou alguém tão afetado pela desigualdade social do meu país. Mais do que isso quero contar que foi ele, o homeless americano, que despertou ainda mais o lado mais humano que tenho. Foi ele que me fez ver que sou parte de todas as mazelas sociais que existem e me sinto mais humana ao sentir-me parte, sem fechar os olhos para isso. 

Ressignificando nossas relações

Escrevo-te assim como quem escreve para alguém que nunca amou. Não te amei, mas tentei. E eis que, por fim, surge algum tipo de amor. Não to...