quarta-feira, 4 de maio de 2011

Morrer em vida para, enfim, morrer

Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perdas, partidas 
Memória, pó. Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso. 
Em vida, morte, te sei.
[Hilda Hilst]


Ando pensando na morte. Provavelmente por ver uma das minhas pessoas tão próxima dela. E também por refletir tanto sobre a vida. O pensamento de viver anda junto com o de morrer, inevitalmente.

Semana passada, enquanto voltava de viagem de Foz do Iguaçu, pensei sobre outra coisa. É que, encarar a estrada, ir ou voltar, sempre me arranca lágrimas. É sempre a sensação de que algo acabou ou começou. Pensei sobre isto então: as ausências com as quais convivemos.

No ônibus, voltando de Foz, comecei pensando no quanto é chato conviver com a saudade que sinto do meu pai. Essa foi a sétima vez nos últimos três anos que o visitei. Meus pais se separaram, meu pai mudou-se para Foz, construiu casa e família nova. Ele vem me visitar sempre que pode. Eu o visito sempre que o nó na garganta me sufoca, mesmo quando não posso... 

Aí pensei nas viagens que fiz e nas cicatrizes que me deixaram. “Viajar é viver temporariamente uma coisa que não volta nunca mais”, pensei. Ah, que tolice... Como se qualquer outra coisa voltasse... É que, na “vida normal”, não temos a plena consciência de que tudo é fase e temporário e perecível, em uma viagem sim. Acho que, em geral, conseguimos viver com mais intensidade quando viajamos, por conta desta falsa impressão. É a mesma analogia da morte. Sabemos, mas não vivemos pensando nela. Vamos levando até sermos levados por ela. No entanto, se uma grave doença chega o fato de que a vida é temporária - como se algum dia não fosse, fica então muito claro.

“I live in cemetery”

A primeira grande ausência de que me lembrei foi a de duas grandes amigas conterrâneas de Neruda. Acho que foi uma das mais marcantes, pois, verdadeiramente, elas foram minhas primeiras amigas na vida (e isso aconteceu há apenas quatro anos). 

Cresci no meio de dois irmãos que faziam aquelas maldades saudáveis - das quais só os irmãos entendem e, nem com eles, eu me entendia. Os dois se entendiam bem. Sempre tive essa dificuldade de inserção, começando por aí. Nunca fiz parte de grupos, nunca tive amigas dormindo em casa ou vice-versa, sempre fui mais isolada. Sozinha no recreio da escola, ou me balançando e cantando numa rede, sempre sozinha. 

Até os 21 tive colegas, fases até que legais e tentativas inúteis de inserção. Mas nunca tive amigos. Quero dizer: nunca tive o que só hoje tenho certeza do que é uma relação de amizade. Então, a primeira vez que me percebi em uma amizade - com tudo o que isso significa, foi com elas. E foi lindo. Algo que nunca experimentei antes, sintonias e trocas e crescimento.

Isso me marcou para sempre por que as primeiras pessoas com quem experimentei isso eram pessoas que, muito provavelmente, eu não iria compartilhar um futuro. E essas coisas são bonitas mesmo, porque você vai vivendo e a relação vai crescendo e ficando forte, até que chega um momento em que você simplesmente faz parte do mundo daquela pessoa e ela do seu. Quando esse momento chegou, falamos do quão triste era pensar que, após o término da temporada, não iríamos mais conviver. Elas me cantaram: “All I wanna do is have some fun” e eu perguntei completando: “until the Sun comes up on Santa Monica Boulevard?”

Era assim: tudo meio musicado. No dia em que nos conhecemos, fomos caminhar na cidade, não lembro em direção ao que caminhávamos, talvez a um supermercado, não sei e nem importa. O caminho é que importa (isso sempre!). Passamos em frente de um cemitério, nos olhamos e começamos a cantar juntas “I live in cemetery”. Essas sintonias sempre me fascinam! Parece um sinal de que estamos nas relações certas.

Elas me visitaram seis meses após nos despedirmos em Utah. E eu as visitei um ano depois que nos despedimos no Brasil (ai, essas despedidas!). Já se passaram dois anos desde que voltei do Chile. Ainda nos falamos, só que o tempo – mais que a própria distância - espaça tudo. E tentar lutar contra o tempo é vão e artificial. 

Como na música que marcou o dia em que conheci duas das minhas grandes ausências - é como se vivêssemos em um cemitério. Vivemos para sermos enterrados em vida sucessivas vezes.

“We put our feet Just where they had, had to go”

Bom se eu fosse a única, mas sou uma em cada tanto de gente que morre assim. Morremos um pouco, dia sim, dia não. Deixamos pedaços espalhados em cidades, momentos e gentes. E, todos esses pedaços, todas essas vidas que deixamos, são bonitas, intensas e, por isso mesmo, sentimos saudades e dói um tanto. Cada cidade e cada pessoa e cada circunstância, de algum modo, nos transforma, junta o velho com o novo e cria alguém que nunca fomos antes e nunca mais seremos depois. Mas, cedo ou tarde, temos que abandonar este alguém tão excepcional, ou para voltar à “vida normal” de todo dia, ou para partir para outro lugar e criar mais um alguém. Seja como for, estamos sempre deixando para trás um pedaço ou outro de nós. É tão inevitável quanto essencial.

Ouvindo The Gulag Orkestar, em uma frase belamente cantada, entendi algo. “Colocamos nossos pés onde eles tinham que ir”, dizia a música. É o que todos nós fazemos. Vamos para onde temos que ir, para onde sentimos que é mais certo. Damos grandes passos que vêm acompanhados de escolhas. Mesmo com duas ou três opções que gostaríamos de manter, a vida nos obriga, até por que não existe outra maneira, nos obriga a fazer uma escolha em detrimento de outra. E, apesar de cada passo adiante significar a nossa escolha pela vida que queremos, estes passos também significam o distanciamento de outras vidas que também queremos, mas que, por só poder viver uma vida, não podemos ter.

Tudo isso seria mais fácil se fossemos mais livres de apegos. Percebi a necessidade do desapego quando meus pais se separaram, quando terminei um relacionamento, quando minha avó faleceu. Sei que é difícil deixar que as coisas morram, simplesmente porque morremos junto, mas...

Essa semana, li algo bem reflexivo sobre isso: a entrevista que Eliane Brum fez com a psicóloga Debora Noal (recomendo que leiam mil vezes!!!) – Em uma de suas respostas, Debora diz sabiamente: “eu me levo para todo lugar, né? Eu não tenho como fugir. Eu estou junto comigo o tempo todo”. E é isso mesmo, tudo o que precisamos é o que podemos carregar. Por mais cru que isso soe, acredito ser bem verdadeiro. E procuro este caminho. Porém, ainda estou longe de ser uma pessoa desapegada.

Aprender a morrer

Quase parece que, até pararmos na frente da tevê e ver que alguém entrou com uma escola matando pessoas tão inocentes e saudáveis como eu e você, até então, parece que esquecemos que a vida é frágil. Parece que só teremos que nos deparar com tal fragilidade na velhice, pois assim é o normal. Assim é que deveria ser. Basta uma tragédia fora de hora para nos depararmos com uma cócega sobre a imprevisibilidade da vida.

Fiquei imaginando como seria uma possibilidade de morte real – não da morte em vida, chegando à mim agora. Pensei primeiro que seria uma injustiça. Eu confesso que não acredito em tudo, mas principalmente, eu não desacredito em nada. Penso que tudo pode ser. Amarguei pensando que posso dormir hoje e ser traída pelas minhas próprias células, coisa assim, tão natural. Como eu lidaria com um câncer me jogando na cara que talvez eu esteja com os dias contados? Primeiro, morro de medo. Depois, fico aliviada lembrando que, no final de tudo, a única coisa que importa é se a gente viveu com intensidade, com paixão e com tudo o que podia dentro do tempo que, sei lá quem ou quê (acho que a vida mesmo) nos permitiu viver. 

Li um livro do filósofo francês Luc Ferry que, dentre muitas coisas, fala que tudo o que buscamos é uma salvação. E a busca da salvação depende da crença de cada um. Para quem crê que a salvação depende de um ser superior, o caminho é seguir mandamentos, rezar e coisas afins. Quem crê em si mesmo e em sua própria vida (pessoas para as quais Ferry escreve), a salvação está em si mesmo e, nesse caso, o caminho é aprender a se salvar em vida, o que ele chama de aprender a morrer. Saber morrer em vida faz com que a verdadeira morte seja apenas mais uma morte dentre tantas que passamos em nosso percurso. Morrer com qualidade, utilizando o sofrimento como crescimento, alivia nossas perdas, deixando a vida mais leve e nos permite a capacidade de continuar, apesar de.

Ressignificando nossas relações

Escrevo-te assim como quem escreve para alguém que nunca amou. Não te amei, mas tentei. E eis que, por fim, surge algum tipo de amor. Não to...