quinta-feira, 27 de maio de 2010

Também acho Deus de uma grande delicadeza

Criei esse blog para compartilhar alguns momentos de plenitude que me acontecem sempre. Momentos de insight, de uma sensação profunda de grandeza interior que geralmente são simples e pequeninos e tem mais a ver com a percepção que cada um tem de si mesmo, dos outros e da vida em geral.
Confesso que - há algum tempo já - depois de ler "O Milagre das Folhas", da Clarice Lispector, ao meu ver tudo pode ser milagroso e grandioso. Eu posso estar atrasada, triste ou com sono, se me caí uma folha ou uma gota de água, paro e olho para cima - meu humor é tomado por uma felicidade imensa do tipo: "Êba! A gotinha me escolheu mais uma vez".

É... eu também acho Deus de uma grande delicadeza.

Segue texto da Clarice.

***
O Milagre das Folhas - Clarice Lispector

"Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza”.

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