Quando eu era pequena meu pai sempre apontava e nos pedia para observar bem os outros. Os desabrigados, os órfãos, enfermos ou qualquer pessoa que ele julgasse estar em uma situação realmente triste. Polida como sempre fui, obedecia e observava. Não sei se por isto, mas sempre tive um interesse abundante pela vida alheia. Não pelo que está em torno, por fora e aparente. Mas sim pelo interno. Minha curiosidade instigante não quer saber idade, estado civil e profissão. Quer saber o que emociona intimamente. O que motiva, o que move, o que movimenta. Nem posso dizer que é um entretenimento por mim escolhido, pois imaginar como cada um vive é um processo natural para mim. Um processo que me envolve desde sempre.
Podem me taxar de louca, mas agora que trabalho perto de casa, e não preciso mais usar transporte coletivo diariamente, sinto falta. O ônibus sempre foi um espaço para olhar olhos e enxergar além. É quase uma vida, só que ao invés de estarmos presos entre o nascer e o morrer, estamos presos entre um embarque e um desembarque. E, como tudo na vida, temos que aproveitar da melhor forma. Alguns leem, alguns ouvem música, alguns falam ao telefone, outros conversam com alguém, ou às vezes falam sozinhos. Eu faço alguma dessas coisas enquanto observo vidas e questiono existências.
Quando eu tinha 12 anos ficava penalizada ao observar velhinhos cansados voltando do trabalho. Sentia compaixão por esses e certo alívio por mim. Minha vida parecia sempre tão melhor, e eu me torturava a entender o que é que os movia apesar de tantos pesares. Aliás, essa é a pergunta que me move até hoje: o que é que motiva os outros a viverem?
Anos depois, quando entendi as mazelas sociais do mundo e percebi que a vida ia além dos meus laços de relacionamento, e do meu mundinho, enxerguei aqueles mesmos senhorios velhinhos com outros olhos. Pensava então que poderia ser meu avô. Eu já não era mais tão feliz, me sentia parte integrante de um mundo injusto. Eu não me confortava ao saber que não era meu avô ali. E nem só por saber que num futuro não muito distante poderia ser minha outra geração. Meu jeito de olhar sempre se modifica na proporção em que mudo. Uma coisa liga a outra. O que esta lá dentro de mim reflete no que está fora, no modo como vejo o outro, como trato o outro. Assim como o outro - que está fora - se propaga para minha alma.
Recordo agora que quando comecei meu primeiro estágio, aos 15 anos, estava voltando para casa e escutei a conversa de uma moça ao telefone. Era uma sexta-feira. Os finais de tarde eram os que mais me reviravam de angústia. Sempre tive para quem e para onde voltar e, mais que isso, sabia que era sempre bem vinda de volta. A vida alheia não me parecia assim, cheia de retornos e esperas alegres...
A moça daquela sexta-feira falava ao telefone com um alguém. Era o final de semana do dia dos pais, e ela choramingava, parecia implorar algo. Ela mexia a cabeça para falar, para um lado e para o outro, em um gesto de lamento, quase que consolando-se nos próprios ombros, um de cada vez. Os olhos eram tristes, porém esperançosos. O peito e a respiração dela demonstravam-me que ela queria algo quase impossível de se conseguir, mas que existia um fio de esperança. Eu sabia disso, porque minha respiração ficava assim quando me negavam algo mil vezes. Mesmo quando eu sabia que era caso perdido, minha esperança, mesmo que pequena, existia.
... Existia porque tudo o que é pequeno existe. Mesmo que com pouca chance. Mesmo que com menor perspectiva. Assim me foram os idosos e a moça do ônibus. Eles e tantos outros personagens em meu caminho têm um significado para mim. Me existem, me constroem, me movem.
São essas pessoas, esses outros, que nos montam, que nos igualam. Pois de fato, somos iguais. Não temos as mesmas pobrezas na superfície, mas nas nossas profundezas as misérias são iguais. Cada um de nós: tão singular e tão coletivo ao mesmo tempo. Todos tentando viver... Escrevi aqui sobre viver. Disse que para viver é necessário voltar-se para dentro, se questionar, se gostar, e ficar à vontade com o ato de ser-só e só-ser. Já falei muito disso aqui, pois acredito que este ato de se amar é o mais divino em uma escala de divindades. Mas este ato anda junto e de mãos dadas com o ato de olhar para o outro. Para mim, a coexistência destes dois atos é o que torna um viver realmente humano e com valimento.
No ano passado, em uma determinada situação, enquanto eu julgava alguém - por algo que, normalmente todos consideramos errado, minha mãe me disse: “Não julgue assim, pois você não sabe o que a pessoa já passou. A gente nunca sabe que tipos de experiências e atenção tal pessoa recebeu na vida”. Ela disse isso e, sem saber, marcou ainda mais em mim a lição mais valiosa que alguém pode ter na vida, que é ser empático. Empatia é a capacidade de perceber de que modo uma pessoa pensa e sente.
A mesma coisa aconteceu este ano. Ao reclamar do jeito de ser de minha avó, meu pai me pediu para refletir na vida judiada que ela teve. Morri de dó de mim mesma ao perceber o quão automático nosso olhar sobre o outro se torna, mesmo com nossas pessoas mais próximas, um só julgar, sem um olhar mais atento, pode acontecer com frequência.
A mesma coisa aconteceu este ano. Ao reclamar do jeito de ser de minha avó, meu pai me pediu para refletir na vida judiada que ela teve. Morri de dó de mim mesma ao perceber o quão automático nosso olhar sobre o outro se torna, mesmo com nossas pessoas mais próximas, um só julgar, sem um olhar mais atento, pode acontecer com frequência.
É claro que o fato de alguém ter passado por isso ou aquilo não justifica certas atitudes ou fatos. Mas justifica que tenhamos um olhar de compaixão e empatia sempre. Ao menos é no que acredito. Pois só acredito em uma vida válida quando repleta de sentimentos como esses, advindos do amor. Amor abundante: a si mesmo, e ao próximo.
Nos sentimos humanos quando percebemos que somos tão carentes quanto qualquer outro mortal e quando conseguimos enxergar a carência de qualquer outro, bem como sua miséria e nossa miséria. Porque sentir-se humano é mesmo um sentimento miserável, mas ao mesmo tempo grandioso.
Só exercemos nossa humanidade quando conseguimos viver de olhos abertos para as indigências dos outros e do mundo e, ainda assim, conseguimos viver e seguir com alegria, mas sem fechar os olhos.
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Ontem recebi meu diploma de bacharel em comunicação social. Na cerimônia de colação o reitor falou algo muito parecido com tudo o que eu escrevi acima. Fez um discurso sobre a filosofia da instituição no qual disse que o papel desta é formar indivíduos que apesar de serem indivíduos exerçam suas funções de cidadãos. Fazemos um juramento de praxe ao colar grau, onde garantimos que vamos utilizar nossos conhecimentos em prol da pátria. Acho esse juramento muito assertivo, principalmente vivendo em um país em que as pessoas com nível superior são a minoria. De minha parte, prometo exercer minha profissão da forma mais digna e humana possível, em benefício da pátria. Acho que todos nós devemos fazer isso dentro da área que nos cabe...
Não dediquei meu diploma à ninguém ontem, mas aproveito para o fazer agora, nessa forma que me sinto mais à vontade: na escrita. Dedico meu diploma àqueles que me ensinaram a filosofia da qual o reitor falou ontem, muito antes de eu ingressar na universidade. Dedico então, às duas pessoas que sempre me fizeram abrir os olhos e ver que não sou só um ser individual, sou cidadã. Dedico enfim, aos meus pais, Magno e Rosana. Seria mentira dizer que me ensinaram tudo o que hoje sei, mas com certeza me ensinaram mais: me ensinaram a ter vontade de saber.
Pai, mãe, esse é pra vocês!