Se
amamos o que projetamos, qual o papel do nosso par?
Você
tem uma família maravilhosa, que está sempre presente e te ama, isso sem
dúvidas! Você não tem muitos amigos, mas o suficiente para sentir que sua
coleção está completa. E, ainda assim, com tudo isso, você guarda consigo uma
carência específica. Acontece que num dia qualquer, num lugar qualquer, você
conhece alguém. Alguém que transforma um dia e lugar ordinário em seu lugar e
dia favorito. Vocês ficam juntos e tudo é simplesmente perfeito. Até mesmo as
imperfeições se tornam assim... perfeitas. Você derruba sorvete de morango na
roupa clara, e nem isso mancha o tempo. Vocês contornam o caos sem
dificuldades. O tempo para, tudo para.
Depois
disso tudo, de se sentir tão completo, você volta para casa com seu mundo
chacoalhado e uma cratera na alma. Então pergunta a si mesmo o porquê, logo
você que estava razoavelmente bem até então, logo você, de repente assim, está
invadido de um desassossego imenso. Como pode a presença de alguém, um simples
movimento de alguém, te deixar assim, com uma mortificação dessas?
Oras,
ninguém tem tanto poder assim não. Somos nós, que inconscientemente damos tal
poder a outrem... Existem várias explicações para isso. Todas elas tentam
explicar o motivo pelo qual, durante as idas e vindas da vida, procuramos um par.
Para
quem gosta de uma explicação espiritual, pode-se dizer que quando chegamos
“neste plano” esquecemos de uma de nossas partes, por isso nossa eterna
carência vem da saudade que sentimos de nossa própria alma, ou mais ou menos
isso.
Tem
também o mito do Andrógino, de Platão, que fala sobre seres que tinham os dois
sexos e, por isso, eram completos, inteiros. Quando estes seres Andróginos
começaram a agir como deuses, sentindo-se acima do bem e do mal, provocaram a
fúria de Zeus, que decide por enfraquecê-los, dividindo-os em dois. Assim, os
Andróginos divididos, passam a vida à procura de sua outra metade. -- Eu que
nunca entendi como o Pink Floyd fez o The Dark Side of The Moon nos anos 70,
fico pasma com a genialidade de mitos como estes – lembrando que foram
descritos há mais de dois mil anos, como narrativas de caráter simbólico que
eram a forma de expressar o entendimento da vida em geral naquele tempo.
Para
quem precisa de algo mais consistente que isso, mais científico, vide o
psicanalista Carl Jung. Para Jung, tudo se explica por uma simples palavra:
“projeção”. Quem falou sobre isso primeiramente foi Freud, mas pelo que
entendi, foi Jung quem dissecou o significado disso. Vou sintetizar as
conclusões dele aqui.
Quando
estamos no ventre da mãe, temos a sensação de que somos completos, plenos. Ao
nascer, sofremos um corte físico, o do cordão umbilical. E, conforme vamos
crescendo, vamos sofrendo uma espécie de corte psíquico que divide nossa mente
em consciente e inconsciente. Por isso, crescemos com uma lembrança de que um
dia já tivemos a sensação de onipotência, e não sossegaremos enquanto não a
recuperarmos.
Identificamo-nos
pela consciência. Tudo o que sabemos e acreditamos a nosso respeito faz parte
de nossa consciência. Já, no inconsciente, há muito do que somos e não sabemos
ou ignoramos. Toda a falta que sentimos na vida, toda nossa carência de ter
outra pessoa conosco para nos sentirmos completos é, na verdade, a falta de
elementos de uma parte nossa que está oculta: o inconsciente. Está é a razão,
segundo Jung, de tentarmos encontrar outra pessoa: para projetar os elementos
do nosso inconsciente. Achar que outra pessoa possui algo que nos falta é então
um devaneio...
"Mas
o amor é apenas uma ilusão. A história que alguém compõe mentalmente sobre
outra pessoa”, já tentava explicar Virginia Woolf.
Então,
parece que vivemos uma vida toda de relacionamentos imaginários que sobrevivem
apoiados em nossa própria sombra. (Meio triste ou frustrante?) - Criamos uma
história, compomos alguém mentalmente para conseguirmos enxergar neste alguém o
que precisamos. Na maioria das vezes, esse objeto de amor nem tem mérito diante
das qualidades que lhe damos e, quando possui alguma das qualidades que o
atribuímos é em menor intensidade do que imaginamos.
No
final das contas, tudo o que achamos sobre o outro é o que achamos sobre nós.
Todo sentimento grandioso que nutrimos por alguém, na realidade, nutrimos por
nós mesmos. Os amores platônicos tendem a ser tão bonitos por isso, pois quanto
maior o espaço para projeções assim, quanto menos se conhece sobre o objeto do
amor, mais espaço temos para rechear uma história, mais espaço para preencher a
outra pessoa com o que precisamos para nos sentir completos, preenchendo este
outro de uma parte nossa mesmo. Isso explica o porquê, quem supomos amar,
parece exercer um poder gigante sobre nós: pois necessitamos de um mergulho
profundo que nos ponha em contato com nossa parte mais funda e, com a partida
desta pessoa, desta ilusão, estaríamos novamente na desesperadora superfície.
Eu imaginava
até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria
ver em você. Eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção
daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você
todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez
nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar
era não mais conseguir ver, entende? (Caio Fernando Abreu)
Saber
disso, ter esse entendimento, não nos torna livres de procurar. Saber que essa
metade está dentro da gente, não destrói o desejo de querer procurar algo fora
de nós. Ainda assim, entender sempre liberta e eu nem sei se conseguiria
explicar o que essa liberdade significa, mas insisto que muito muda quando
entendemos (e isso vale para tudo!).
Sendo
assim, tendo tudo o que precisamos em nós mesmos, fico me perguntando qual é o
papel do outro em nossa vida? Esse par que sempre buscamos, o que sinceramente
queremos dele? Vai ver o caminho é ir buscando por nossa saudosa metade dentro
da gente e ir deixando para o objeto de amor outro tipo de relação?! Talvez uma
relação onde percebemos o outro como diferente de nós mesmos e, sendo assim,
estabelecemos uma relação de amor mútuo, compartilhando as aflições que temos
com nós mesmos e em nossas vidas... Será que é isso? Ou vai ver só queremos nos
sentir aconchegados igual nos sentíamos no ventre materno. Aquela sensação
primitiva de calor e acolhimento. É uma coisa bem mais instintiva que racional.
“O eterno acalentar não destrói a ilusão” - Não existe entendimento capaz de
acabar com o desejo por esse embalo do qual Virginia Woolf fala sabiamente.
Quem sabe, tudo o que a gente quer do outro, é um cheiro reconhecível, um
cantinho quente, um porto seguro... Não sei!