Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perdas, partidas
Memória, pó. Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
[Hilda Hilst]
Provei teu gosto.
Perdas, partidas
Memória, pó. Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
[Hilda Hilst]
Ando pensando na morte.
Provavelmente por ver uma das minhas pessoas tão próxima dela. E também por
refletir tanto sobre a vida. O pensamento de viver anda junto com o de morrer,
inevitalmente.
Semana passada, enquanto voltava
de viagem de Foz do Iguaçu, pensei sobre outra coisa. É que, encarar a estrada,
ir ou voltar, sempre me arranca lágrimas. É sempre a sensação de que algo
acabou ou começou. Pensei sobre isto então: as ausências com as quais
convivemos.
No ônibus, voltando de Foz,
comecei pensando no quanto é chato conviver com a saudade que sinto do meu pai.
Essa foi a sétima vez nos últimos três anos que o visitei. Meus pais se
separaram, meu pai mudou-se para Foz, construiu casa e família nova. Ele vem me
visitar sempre que pode. Eu o visito sempre que o nó na garganta me sufoca,
mesmo quando não posso...
Aí pensei nas viagens que fiz e nas
cicatrizes que me deixaram. “Viajar é viver temporariamente uma coisa que não
volta nunca mais”, pensei. Ah, que tolice... Como se qualquer outra coisa
voltasse... É que, na “vida normal”, não temos a plena consciência de que tudo
é fase e temporário e perecível, em uma viagem sim. Acho que, em geral,
conseguimos viver com mais intensidade quando viajamos, por conta desta falsa
impressão. É a mesma analogia da morte. Sabemos, mas não vivemos pensando nela.
Vamos levando até sermos levados por ela. No entanto, se uma grave doença chega
o fato de que a vida é temporária - como se algum dia não fosse, fica então
muito claro.
“I live in cemetery”
A primeira grande ausência de que
me lembrei foi a de duas grandes amigas conterrâneas de Neruda. Acho que foi
uma das mais marcantes, pois, verdadeiramente, elas foram minhas primeiras
amigas na vida (e isso aconteceu há apenas quatro anos).
Cresci no meio de dois irmãos que
faziam aquelas maldades saudáveis - das quais só os irmãos entendem e, nem com
eles, eu me entendia. Os dois se entendiam bem. Sempre tive essa dificuldade de
inserção, começando por aí. Nunca fiz parte de grupos, nunca tive amigas
dormindo em casa ou vice-versa, sempre fui mais isolada. Sozinha no recreio da
escola, ou me balançando e cantando numa rede, sempre sozinha.
Até os 21 tive colegas, fases até
que legais e tentativas inúteis de inserção. Mas nunca tive amigos. Quero
dizer: nunca tive o que só hoje tenho certeza do que é uma relação de amizade.
Então, a primeira vez que me percebi em uma amizade - com tudo o que isso
significa, foi com elas. E foi lindo. Algo que nunca experimentei antes,
sintonias e trocas e crescimento.
Isso me marcou para sempre por
que as primeiras pessoas com quem experimentei isso eram pessoas que, muito
provavelmente, eu não iria compartilhar um futuro. E essas coisas são bonitas
mesmo, porque você vai vivendo e a relação vai crescendo e ficando forte, até
que chega um momento em que você simplesmente faz parte do mundo daquela pessoa
e ela do seu. Quando esse momento chegou, falamos do quão triste era pensar
que, após o término da temporada, não iríamos mais conviver. Elas me cantaram:
“All I wanna do is have some fun” e eu perguntei completando: “until the Sun
comes up on Santa Monica Boulevard?”
Era assim: tudo meio musicado. No
dia em que nos conhecemos, fomos caminhar na cidade, não lembro em direção ao
que caminhávamos, talvez a um supermercado, não sei e nem importa. O caminho é
que importa (isso sempre!). Passamos em frente de um cemitério, nos olhamos e
começamos a cantar juntas “I live in cemetery”. Essas sintonias sempre me
fascinam! Parece um sinal de que estamos nas relações certas.
Elas me visitaram seis meses após
nos despedirmos em Utah. E eu as visitei um ano depois que nos despedimos no
Brasil (ai, essas despedidas!). Já se passaram dois anos desde que voltei do
Chile. Ainda nos falamos, só que o tempo – mais que a própria distância -
espaça tudo. E tentar lutar contra o tempo é vão e artificial.
Como na música que marcou o dia
em que conheci duas das minhas grandes ausências - é como se vivêssemos em um
cemitério. Vivemos para sermos enterrados em vida sucessivas vezes.
“We put our feet Just where they
had, had to go”
Bom se eu fosse a única, mas sou
uma em cada tanto de gente que morre assim. Morremos um pouco, dia sim, dia
não. Deixamos pedaços espalhados em cidades, momentos e gentes. E, todos esses
pedaços, todas essas vidas que deixamos, são bonitas, intensas e, por isso
mesmo, sentimos saudades e dói um tanto. Cada cidade e cada pessoa e cada
circunstância, de algum modo, nos transforma, junta o velho com o novo e cria
alguém que nunca fomos antes e nunca mais seremos depois. Mas, cedo ou tarde,
temos que abandonar este alguém tão excepcional, ou para voltar à “vida normal”
de todo dia, ou para partir para outro lugar e criar mais um alguém. Seja como
for, estamos sempre deixando para trás um pedaço ou outro de nós. É tão
inevitável quanto essencial.
Ouvindo The Gulag Orkestar,
em uma frase belamente cantada, entendi algo. “Colocamos nossos pés onde eles
tinham que ir”, dizia a música. É o que todos nós fazemos. Vamos para onde
temos que ir, para onde sentimos que é mais certo. Damos grandes passos que vêm
acompanhados de escolhas. Mesmo com duas ou três opções que gostaríamos de
manter, a vida nos obriga, até por que não existe outra maneira, nos obriga a
fazer uma escolha em detrimento de outra. E, apesar de cada passo adiante
significar a nossa escolha pela vida que queremos, estes passos também
significam o distanciamento de outras vidas que também queremos, mas que, por
só poder viver uma vida, não podemos ter.
Tudo isso seria mais fácil se
fossemos mais livres de apegos. Percebi a necessidade do desapego quando meus
pais se separaram, quando terminei um relacionamento, quando minha avó faleceu.
Sei que é difícil deixar que as coisas morram, simplesmente porque morremos
junto, mas...
Essa semana, li algo bem
reflexivo sobre isso: a entrevista
que Eliane Brum fez com a psicóloga Debora Noal (recomendo que leiam mil
vezes!!!) – Em uma de suas respostas, Debora diz sabiamente: “eu me
levo para todo lugar, né? Eu não tenho como fugir. Eu estou junto comigo o
tempo todo”. E é isso mesmo, tudo o que precisamos é o que podemos
carregar. Por mais cru que isso soe, acredito ser bem verdadeiro. E procuro
este caminho. Porém, ainda estou longe de ser uma pessoa desapegada.
Aprender a morrer
Quase parece que, até pararmos na
frente da tevê e ver que alguém entrou com uma escola matando pessoas tão
inocentes e saudáveis como eu e você, até então, parece que esquecemos que a
vida é frágil. Parece que só teremos que nos deparar com tal fragilidade na
velhice, pois assim é o normal. Assim é que deveria ser. Basta uma tragédia
fora de hora para nos depararmos com uma cócega sobre a imprevisibilidade da
vida.
Fiquei imaginando como seria uma
possibilidade de morte real – não da morte em vida, chegando à mim agora.
Pensei primeiro que seria uma injustiça. Eu confesso que não acredito em tudo,
mas principalmente, eu não desacredito em nada. Penso que tudo pode ser.
Amarguei pensando que posso dormir hoje e ser traída pelas minhas próprias
células, coisa assim, tão natural. Como eu lidaria com um câncer me jogando na
cara que talvez eu esteja com os dias contados? Primeiro, morro de medo.
Depois, fico aliviada lembrando que, no final de tudo, a única coisa que
importa é se a gente viveu com intensidade, com paixão e com tudo o que podia
dentro do tempo que, sei lá quem ou quê (acho que a vida mesmo) nos permitiu viver.
Li um livro do filósofo francês
Luc Ferry que, dentre muitas coisas, fala que tudo o que buscamos é uma
salvação. E a busca da salvação depende da crença de cada um. Para quem crê que
a salvação depende de um ser superior, o caminho é seguir mandamentos, rezar e
coisas afins. Quem crê em si mesmo e em sua própria vida (pessoas para as quais
Ferry escreve), a salvação está em si mesmo e, nesse caso, o caminho é aprender
a se salvar em vida, o que ele chama de aprender a morrer. Saber morrer em vida
faz com que a verdadeira morte seja apenas mais uma morte dentre tantas que
passamos em nosso percurso. Morrer com qualidade, utilizando o sofrimento como
crescimento, alivia nossas perdas, deixando a vida mais leve e nos permite a
capacidade de continuar, apesar de.